Participe do Ato em Defesa da Saúde Pública e contra a Privatização da Vida. A manifestação ocorre na terça-feira, 9 de abril, com concentração às 15 horas, no Buraco do Lume (próximo ao Largo da Carioca), e encerramento na Cinelândia. Nos últimos meses, temos publicado uma série de matérias e entrevistas que elencam os muitos motivos para a não privatização da saúde. Leia aqui mais um artigo, publicado originalmente no blog do Cebes e assinado pelo sanitarista Reinaldo Guimarães, sobre a situação de desconforto vivido pelas políticas públicas de saúde em nível global.
A Defensiva Mundial da Saúde Pública
Por Reinaldo Guimarães*
Artigo publicado originalmente no blog do Cebes
Agora que aparecem na rede, revistas e jornais notícias e comentários sobre o desmonte do Sistema Nacional de Saúde britânico, fica ainda mais evidente a situação de desconforto vivida pelas políticas públicas de saúde em nível global. Situação que, num ensaio que será brevemente publicado na revista Saúde em Debate, denominei de “Mal Estar na Saúde Pública” e que não diz respeito apenas à erosão dos sistemas de saúde.
Talvez seja conveniente situar historicamente os sistemas nacionais de saúde no âmbito das políticas de proteção social, em particular na modalidade da proteção social fundada no conceito de Seguridade Social. Eles, ou pelo menos o seu exemplo paradigmático – o Serviço Nacional de Saúde britânico – são um produto de uma conjuntura global muito particular.
O sistema de saúde britânico foi criado em 1948, ano central entre os poucos que correram entre o final da II Guerra Mundial e o aprofundamento da Guerra Fria, com o bloqueio soviético de Berlim e o começo da Guerra da Coréia. Pranteados e enterrados os 60 milhões de mortos da guerra, foram anos de construção solidária, pelo menos no que diz respeito ao bloco vencedor. Esses poucos anos de solidariedade e de afirmação democrática e participativa já nasceram, entretanto, marcados por um “beijo da morte”. Como numa disputa esportiva, ele durou o tempo que se leva para que os adversários se estudem. Tempo que propiciou uma disputa de espaço geopolítico fundada em tentativas de construção de hegemonia mediante um modelo multilateral de solução de controvérsias entre países. Tempo em que foram criadas a ONU e todas as suas organizações subsidiárias, inclusive a hoje moribunda OMS.
Entendo que os sistemas nacionais de saúde constituídos numa perspectiva universalista e inseridos numa moldura mais ampla de políticas para a seguridade social vivem atualmente sob ataque. O objetivo deste é o seu desmonte, acoitado pelo termo “reforma”, decerto portador de maior positividade. Mas quais as evidências do desmonte?
Na América Latina, com exceção do Brasil, a maior parte dos sistemas nacionais foi imaginada e construída segundo um padrão não universalista. Com o México, a Colômbia e o Chile à frente, durante os anos 80 e 90 do século passado, propostas oriundas principalmente do Banco Mundial foram aplicadas em vários países, alguns deles passando diretamente de uma situação de não possuírem qualquer sistema nacional de saúde para a de terem, enfim, um sistema, muito embora fora dos padrões de uma proteção social fundada no conceito de seguridade.
No hemisfério norte, a partir desses mesmos anos 80, começaram as reformas dos sistemas nacionais universais, cujo exemplo mais fecundo foi a Grã-Bretanha sob o comando da Baronesa Thatcher, que governou entre 1979 e 1990. Ao fim e ao cabo, desde então, a maior parte dos países da Europa e o Canadá vêm experimentando operações mais ou menos aprofundadas de desmonte que, à parte especificidades nacionais, têm como denominador comum duas características: (1) o desfinanciamento público paulatino do sistema; (2) o crescente vínculo entre a oferta de serviços e a capacidade de pagamento do usuário.
Com a subida ao poder dos conservadores em 2010, o Sistema Nacional de Saúde britânico veio de sofrer mais uma derrota. Em finais de 2011, o Parlamento aprovou uma nova reforma intitulada “Equityandexcellence: Liberatingthe NHS” (Equidade e Excelência: Liberalizando o NHS), cuja síntese é: (1) hospitais públicos passam a ter que produzir superávit; os que não o fizerem ou fecham ou terão seus serviços concedidos a empresas privadas – além disso, na busca por superávit, poderá haver negativas para procedimentos mais complexos, considerados “deficitários”; (2) os serviços de saúde serão geridos por consórcios de GP’s (médicos de família) – que poderão contratar gestores privados de saúde para gerir adequadamente esses serviços; (3) haverá um corte orçamentário de 20 bilhões de Libras (cerca de R$ 70 bilhões – cerca de 7% do orçamento do NHS).
Richard Horton é o editor-chefe da revista The Lancet. Ele é professor emérito da London SchoolofHygieneand Tropical Medicine, do UniversityCollege de Londres e da Universidade de Oslo. A respeito da reforma em curso o Dr. Horton declarou:
“Nós estamos a ponto de vivenciar uma fase de caos sem precedentes nos nossos serviços de saúde. Aqueles entre nós que se opuseram a essa lei não devemos nos regozijar de que essa confusão aconteça . As pessoas vão morrer graças à decisão do governo de focar na competição ao invés de na qualidade no cuidado à saúde. O desastre que se aproxima coloca ainda mais responsabilidade sobre nós para derrubar essa legislação destrutiva e remover esse governo não democrático”.
Deve ser enfatizado que a reforma atual não é uma consequência da persistente crise econômica de 2008, como poderia parecer à primeira vista. E paradoxalmente, aquela crise, que deveria ser entendida como o índice maior da falência da raiz ideológica neoliberal que a gerou lança mão do mesmo ideário para a reforma do sistema de saúde. Em outros termos os autores da reforma do NHS pretendem nos convencer de que tudo aquilo que o neoliberalismo longe de resolver, começou a destruir, poderá ser resolvido e reconstruído com mais neoliberalismo.
Mas é certo que a crise econômica pela qual passa a Europa aumentará bastante o desmonte dos sistemas de saúde europeus, como já se observa em toda a Europa meridional. Pela dinâmica que se observa hoje, provavelmente chegará também à Europa central e setentrional.
A República Popular da China tem quase 1,4 bilhão de habitantes. Pouco menos da metade deles ainda vive no campoe, apesar do controle sobre a mobilidade das pessoas, as cidades estão inchando com o êxodo rural acelerado. Como consequência da política de “um filho apenas”, instituída para frear o crescimento demográfico, o envelhecimento da população é uma preocupação crescente. Estima-se que em 2050 existirão cerca de 350 milhões de pessoas com 60 anos e mais. Não é exagero dizer que se trata do maior desafio na saúde pública mundial, apesar do crescimento econômico estar fazendo a sua parte – a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza tem caído consistentemente desde meados da década de 90 do século passado.
Para enfrentar esse gigantesco problema, a China vem implementando desde 2009 uma reforma no seu sistema de saúde. O drama está em que a reforma é baseada na instituição de três modalidades de seguro-saúde – uma para a população rural, outra para empregados urbanos e a terceira para habitantes urbanos não empregados formalmente – uma variante dos modelos utilizados por vários países da América Latina uma ou duas décadas antes. As características dos três tipos de seguro são distintas, inclusive no que se refere aos procedimentos cobertos. Este modelo vincula na prática a oferta de serviços à capacidade de pagamento dos mesmos pelos usuários. Além disso, os esquemas de seguro cobrem apenas pacientes internados e o “pacote” de procedimentos é considerado bastante restrito. Penso queo esforço chinês é admirável. Mas não creio que fuja do ambiente geral de reformas liberais na saúde pública.
Mencionei mais acima o estado terminal da nossa OMS, estrangulada por uma situação na qual mais de 70% de seu orçamento é constituído de recursos cujos doadores possuem completo domínio sobre suas aplicações (doações do tipo non core). A contribuição da OMS a essa “nova” modelagem dos sistemas nacionais de saúde pôde ser observada a partir do lançamento do Relatório Mundial da Saúde de 2010 no qual, em homenagem ao “realismo político”, foi anunciada a estratégia da “cobertura universal” para os sistemas nacionais de saúde.
No relatório, essa estratégia pode ser sintetizada pela seguinte citação: “O único caminho para reduzir a dependência dos pagamentos diretos é o encorajamento pelos governos de abordagens de partilha de risco e pré-pagamento, seguida pela maioria dos países que mais se aproximaram da cobertura universal.Quando a população tem acesso a mecanismos de pré-pagamento e distribuição de risco, o objetivo da cobertura universal torna-se mais realista”(WHO, World Health Report – 2010, p. XVII).
A conjuntura brasileira que criou o nosso sistema nacional de saúde em 1988 era, em perspectiva local, parecida àquela outra, mundial, do pós-guerra imediato. Pois 1988 também foi um período de euforia e de comunhão cidadã no Brasil. Foi o último ano do período que correu entre o fim da ditadura (1985) e a tomada do Congresso Nacional e do governo de José Sarney (1985-1989) pelos estamentos políticos que até hoje assombram a vida política brasileira e que em 1988 eram chamados de “Centrão”.
As dificuldades do nosso Sistema Único de Saúdetêm sido objeto discussão bastante ampla. Tal qual a crise dos sistemas europeus, também não começou agora. Desde a promulgação da constituição cidadã, em 1988, suas bases conceituais e ideológicas começaram a ser erodidas. A primeira “mordida” foi a derrota da proposta original para o seu financiamento – um terço do orçamento da seguridade social.
A partir daí, todas as tentativas de se estabelecer bases financeiras estáveis e em nível adequado fracassaram, ou no nascedouro ou após alguns poucos anos de terem sido postas em prática como foi o caso da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF). Seguiram-se as derrotas no debate sobre a regulamentação da Emenda 29 e o engavetamento das propostas de destinação de 10% das receitas da União ou de criação de uma nova contribuição específica para a saúde.
Em paralelo aos constrangimentos financeiros, aprofundaram-se os problemas de gestão, a maioria deles decorrentes de efeitos colaterais indesejados produzidos no processo de descentralização das ações do SUS.
Eu estou entre aqueles que acreditam que o Brasil, na última década, avançou um século. Isso, no entanto, não me impede de registrar a fraca atuação dos agentes políticos centrais dessa década no sentido do refreamento do processo de crescente erosão do nosso SUS. E aqui temos mais uma originalidade do nosso sistema público de saúde: nascido de um ideário que contrariava frontalmente uma conjuntura global na qual as propostas neoliberais estabeleciam sua hegemonia, após dez anos de governos nacionais que foram lideranças mundiais na crítica ao pacote neoliberal – com um patrimônio político que inclui uma revolução social inclusiva, pacífica e democrática – temos um sistema de saúdeque cada vez mais concede àquelas propostas derrotadas pelo SUS em 1988.
Um SUS que, a cada dia, perde terreno para a ilusão de esquemas privados de pré-pagamento, que alardeiam um cuidado à saúde de melhor qualidade para os contingentes recém-incluídos no mercado de consumo de massas. Como se as categorias de “público” e “boa qualidade” fossem antitéticas. Como se os exemplos de sistemas nacionais de saúde que uniram a universalidade à equidade sem abrir mão da qualidade – Grã-Bretanha, Canadá, Cuba, França, etc. – jamais tivessem existido.
Mas não sou pessimista e foi com alívio que tomei conhecimento do formal desmentido do ministro Alexandre Padilha quanto à proposta de concessão de desoneração tributária para as seguradoras privadas e a instituição de “pacotes” ultrarestritos de serviços de saúde para os contingentes populacionais recém-incluídos acima referidos.
Mas, realisticamente, ressalto apenas que ao ser responsável por menos de 50% do gasto com saúde no país o SUS deixa de ser universal no plano fático. No presente, a universalidade do SUS reside exclusivamente em sua realidade ideológica originária. A instituição da desoneração e da segmentação somaria, ao fim da universalidade, o fim da equidade e da integralidade.
Devemos a Wanderley Guilherme dos Santos o desenvolvimento do conceito de “cidadania regulada”, para definir a dinâmica da ampliação dos direitos políticos e sociais no Brasil. E na nossa história, um dos momentos mais importantes em que a regulação vertical da cidadania esteve associada a uma importante conquista de direitos foi a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943 por Getúlio Vargas. Nela, Getúlio organizou todo o conjunto de dispositivos criados durante seu governo desde 1930 no campo dos direitos trabalhistas e dos direitos sociais. A regulação da cidadania, no caso, estava em que os novos direitos alcançavam apenas os que estavam no mercado formal de trabalho.
O Sistema Único de Saúde foi o principal projeto de política social no Brasil, senão o único, a romper com o padrão de cidadania regulada na conquista de direitos sociais. O conceito de universalidade nele estabelecido, a sua inscrição setorial na política de seguridade social (saúde + previdência social + assistência social), bem como sua proposta original de financiamento (1/3 do orçamento da seguridade), sustentam a afirmativa.
Esse último comentário, eu o faço porque, no meu ponto de vista, o presente mal estar do nosso Sistema Único de Saúde, além de projetar um possível desastre sanitário caso aumentem as dificuldades atuais, poderão ter um significado sócio-político de imenso retrocesso no campo das conquistas cidadãs no Brasil.
*Reinaldo Guimarães é professor e sanitarista
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