Do alto da sua sala no quinto andar da Fundação Getúlio Vargas, a pesquisadora Sonia Fleury observa a cidade do Rio de Janeiro e suas inúmeras contradições. Em recente artigo publicado no Le Mond Diplomatique, Sonia fez severas críticas à emergência do setor empresarial de serviços de saúde, fato que, segundo ela, poderia decretar a morte do nosso Sistema Único de Saúde.
Agora, em entrevista ao BoletIN, a pesquisadora conversou sobre o papel do Estado e o que ela chama de “veias abertas do SUS”, condenou os princípios de mercado quando aplicados ao planejamento das ações públicas e apontou para a “crônica de uma morte anunciada”, caso não sejam avaliadas as parcerias excessivas que vêm sendo feitas com o setor privado na área da saúde.
“Acho que há demasiados canais e fluxos de subsídios, de apoio ao setor privado, desonerações, e um descaso muito grande com os sistemas universais de política pública”, disse. Sonia Fleury é doutora em Ciência Política e mestre em Sociologia pelo IUPERJ, além de bacharel em Psicologia pela UFMG. Pesquisadora Titular Aposentada da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, onde coordenou centro de pesquisas em políticas e reformas de saúde, foi também presidente do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (CEBES), na gestão 2006-2009. Confira a entrevista na íntegra:
BoletIN – Queria começar com uma questão colocada no seu artigo do Le Mond Diplomatique (“Um remédio para matar ou salvar o SUS?”): é possível pensar um Estado sem funcionários, carreiras, saberes e instituições próprias em uma área como a saúde?
Sônia Fleury – Eu penso que não. Acho que essa é a utopia do mercado, de alguma forma, englobar o próprio Estado. O Estado se transforma num financiador, mas é como se o Estado não precisasse ter uma lógica que lhe é própria, que lhe é diferente e que, para saber operar essa lógica, precisa ter conhecimento próprio, tecnologia própria. É claro que existem instrumentos de administração privada que foram incorporados pelo Estado e vice-versa. Há troca nisso. Mas há um modo de ser e de trabalhar em torno da questão pública que é distinta da competição ou que é distinta do voluntariado e da paixão. E eu acho que é impossível de ela ser conseguida, se você reduz o estado a financiador. Ele perde completamente essa possibilidade de raciocinar e agir com um conhecimento próprio sobre o que ele quer. Ele passa a ser submetido à lógica daquele que ele vai acabar comprando. Veja o caso da Colômbia, que é muito emblemático. Nos anos 90, era considerada a reforma que nós todos devíamos fazer na América Latina porque integrava tudo o que havia de bom no mercado com o Estado. E hoje a Colômbia vive uma situação complicadíssima na área da saúde porque houve uma financeirização da saúde. Na verdade, o estado virou um promotor de vários seguros, sejam públicos ou privados, e de toda uma lógica financista em torno disso. Mas alguém paga a conta. É uma lógica ilógica. Ela leva a aumentar os custos. Peguemos um exemplo em outra área para ficar mais claro. Na Providência, aqui no Rio, o Governo entregou todo aquele pacote para as grandes empreteiras fazer e manter o Porto Maravilha. Aí, o que acontece? As empreiteiras contrataram para a limpeza pública a Comlurb, que é do próprio governo. Agora, ela cobra uma taxa de administração sobre isso. Então, cada um vai contratando outro e vão aumentando os custos quando, na verdade, era pra baratear e tornar mais flexível, mais razoável. Quer dizer, essa não é uma lógica que seja a melhor para um planejamento da ação pública.
BoletIN – Essa redução do papel do Estado é o que lhe leva a apontar uma “morte progressiva do SUS”?
Sônia Fleury – Eu acho que há um abandono da gestão pública, de toda a ideia de gestão pública, como se o Estado fosse incompetente pra gerir e, portanto, qualquer coisa a gente corta fora. O problema é que não se enfrenta a discussão em torno dos mecanismos que foram criados para proteger o Estado. Em vez disso, argumenta-se: “Porque o Estado é burocrático, porque o Estado tem regime jurídico único, porque o Estado demora a atender uma licitação”. Ora, se eles têm alguma deficiência, era preciso analisá-la e repensar a questão do Estado. Mas não, o que fazem é manter tudo isso na Lei, inclusive na Lei de Responsabilidade Fiscal.
BoletIN – O que tem levado a esse aumento exacerbado, na Saúde, de contratações de Organizações Sociais e Parcerias Público-Privadas?
Sônia Fleury – É justamente o fato de que os municípios têm que se manter dentro do patamar definido pela Lei de responsabilidade Fiscal. E aí, numa área intensiva e pessoal como é a saúde, por exemplo, o que se faz? Contrata fora, porque aí isso te mantém dentro da Lei que é o valor máximo que você pode gastar do orçamento com pessoal. Então, é um Estado que burla a si mesmo, ao invés de enfrentar o problema de onde estão as deficiências da gestão pública. Esse abandono tá aumentando o gap enorme que existe entre a gestão pública e a privada. E a tendência é piorar. Tende a chegar a um ponto em que vai se dizer: “o Estado não tem competência para administrar, então entrega para o setor privado”. Essa é a crônica de uma morte anunciada.
BoletIN – Essa é a principal crítica que você faz a essa tendência das parcerias público-privadas (PPPs) que vêm sendo colocadas como uma solução para os problemas de gestão na área da saúde?
Sônia Fleury – Eu acho que, para o estado atuar através de parcerias, ele tem que ser muito criterioso e saber onde é melhor. Eu não sou totalmente contra as parcerias. Eu acho que, por exemplo, pra desenvolvimento científico-tecnológico, as parcerias pra produção de medicamento, de insumos, são muito importantes. Você junta saberes, capacidade da indústria e tudo o mais. Agora, por que é que o Estado tem que contratar profissionais de saúde que deveriam ter uma ética pública, uma maneira de lidar, um padrão? Esse padrão é dado pelo setor público. Se você olhar o que houve de deterioração no atendimento do seguro privado! Eles estão reduzindo o quanto pagam para os médicos, estão criando filas e cada vez mais demoras no atendimento. Por quê? Porque o setor público piorou. Quem dá o padrão é o setor público; não é o privado. Agora, se o setor público cai desse jeito, o mercado vai só lucrar e derrubar o padrão também. E sabe por quê? Ele vai lucrar mais se cair o padrão. Porque não tem pra onde correr. Então, eu acho que o setor público bom é o que estabelece o padrão. Na verdade, seria um absurdo dizer que o setor público em saúde hoje está pior do que antes. Mas eu acho que ele está se generalizando como um padrão pior.
BoletIN – Na sua avaliação, qual o maior problema que o nosso Sistema Único de Saúde enfrenta hoje?
Sônia Fleury – Eu acho que há uma disputa de hegemonias em que o mercado privado, junto com a mídia a ele associado, não fala nada de bom sobre o SUS, não há um incentivo pra que isso melhore do ponto de vista da sociedade civil. Há todo tempo uma denúncia de que tá tudo muito ruim, como se não houvesse solução pra ser melhor. Mas há. Elas existem. Então, eu acho que, se nós ganhamos realmente do ponto de vista da política, de criar um SUS, de constitucionalizar isso, nós perdemos do ponto de vista ideológico, porque as pessoas acham que o SUS é ruim. A sociedade em geral quer sair para um plano de saúde. Claro que é importante a imprensa denunciar o sofrimento das pessoas. Mas também não está havendo espaço pra você discutir melhorias sobre o SUS. Nós, intelectuais, antes, tínhamos muito mais espaço na mídia para discutir administração pública. Hoje, você só pode fazer crítica mas se você quiser fazer algum artigo mostrando como melhorar as coisas, isso foi completamente eliminado. O setor privado, que inicalmente foi contra a criação do SUS, hoje sabe que a saída dele é ganhar dinheiro com o SUS. Porque o mercado é muito restrito. A forma de crescer é através de financiamento público. Então, são inúmeras as veias abertas do SUS. E eu acho que esse mapa dos fluxos, dessas veias abertas do SUS, deveria ser feito pelos defensores do SUS. Acho que é preciso estancar isso de alguma maneira. Alguma vez a política pública avaliou as vantagens desses recursos que estão sendo canalizados para a área privada? É preciso avaliar o que elas trazem de benefício para o bem público. Eu acho que isso não está sendo avaliado. Acho que há demasiados canais e fluxos de subsídios, de apoio ao setor privado, desonerações, e um descaso muito grande com os sistemas universais de política pública.
BoletIN – O que pode ser apontado como alternativa diante desse cenário a fim de que o Estado não seja um mero financiador da saúde mas que se faça valer a primazia do interesse público sobre o privado?
Sônia Fleury – Eu penso que nós temos que encarar o problema da gestão desde o nível das unidades – nós fizemos um esforço muito grande para a gestão do sistema e muito pouco pra gestão das unidades. É preciso realmente que melhore a qualidade das unidades de saúde, para que funcione e para que exista a possibilidade da população usuária denunciar quando for o caso. Hoje, onde denunciar a ausência do médico na UPA, por exemplo? Reclama com quem? Com o bispo? As ouvidorias são inóquas, não estão ligadas a um sistema de tutela dos interesses públicos. Eu acho que nós tínhamos que melhorar tudo isso, melhorar a gestão e a responsabilização. Acho que tem que ter responsabilidades muito claras na área pública e isso tem que estar claro para a sociedade e, principalmente, para os usuários daquele sistema. Acho que nós temos que baixar a bola do controle social para o nível do usuário, para o nível da unidade, onde as pessoas sofrem, onde são desrespeitadas. E não ficar só no nível da política do sistema. Para isso, rever essas parcerias que estão sendo feitas seria um grande passo. Eu não acho que é a ‘maravilha’ do SUS. Quem está lá sabe o que sofre. Mas eu não acho que tem que abandonar isso. Tem que melhorar. A saída certamente não será um setor lucrativo. E nessa área das parcerias, é importante uma discussão: o contrato tem de ser feito de modo que não prejudique o Estado nem que seja um contrato tão leonino do ponto de vista do Estado que o setor que está sendo contratado vá diminuir a qualidade, prejudicando por fim o usuário. Então, essa tensão não pode ser resolvida com princípios de mercado. Ou seja, a melhoria do setor público só pode ajudar.
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