Em junho, o Movimento Nacional de População em Situação de Rua do Espírito Santo (MNPR-ES), juntamente com outras entidades, divulgou nota em repúdio a ações de violência contra moradores de rua ocorridas em Vitória. Na ocasião, Magno Francisco Bretas e Devanil Monteiro foram agredidos por Guardas Municipais durante uma abordagem no Centro da capital capixaba. O BoletIN entrevistou Ana Heckert, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e uma das coordenadoras do Projeto de Extensão Andarilhos: construindo outros caminhos na cidade, que compartilhou ações em andamento na universidade, a partir desta iniciativa, e analisou esta situação. Colaboraram com esta entrevista a também coordenadora Gil Kunz, os/as extensionistas do projeto Allana Soares, Isabel Valli, Lígia Pimenta, Luisa Modolo, Mayara Hartuiq e Sara Casteluber e o mestrando Antonio Martins.
BoletIN – Essa ação de violação denunciada na nota pública contra população em situação de rua tinha qual propósito por parte dos agentes de Estado do Espírito Santo?
Ana Heckert – As justificativas, por mais que existam, não são plausíveis. O que estava sendo colocado, desde janeiro, em Vitória, é que a população de rua tinha direito de ir e vir, mas não de permanecer. Agora, o que se diz é que a população de rua tem direito de ir e vir, permanecer, mas não de morar na rua. Não sabemos qual é a diferença entre permanecer e morar. Não há justificativa plausível. Neste caso, não houve resistência, os moradores de rua não estavam armados, não se pode alegar um confronto físico. Queremos ressaltar que essas práticas de violência só acontecem porque, de algum modo, o poder público está admitindo essa possibilidade. Isso acontece porque não é apurado, não há uma fala explícita assumindo que esse tipo de prática não pode ser admitida.
A última ação de violação ocorreu em 5 de junho, contra dois populares de rua e movimentos do Espírito Santo estão se pronunciando. Defendemos que a população de rua tenha o direito à cidade, o direito ao acesso a políticas públicas. Apesar de todas as políticas já pactuadas, de serem cidadãos como nós que não moramos nas ruas, não é isso que está ocorrendo.
BoletIN – De que forma os movimentos estão se pronunciando em reação a este episódio?
Ana Heckert – Ainda não houve mobilização popular, mas o movimento está avaliando se vai às ruas para uma manifestação e quando. Há alguns meses, o MNPR-ES organizou uma vigília na Praça Costa Ferreira, em Vitória, depois de algumas situações que aconteceram. Contaram com apoio de várias entidades. O movimento se reúne toda semana e integrantes do Projeto Andarilhos que participam das reuniões informaram que, além de procurar apoio e proteção, estavam avaliando se haveria mobilização. Também acionaram representações de direitos humanos do estado.
BoletIN – Que ações vocês realizam na UFES, relacionadas à população em situação de rua?
Ana Heckert – Há três anos, existe uma comissão do MNPR no Espírito Santo e, há dois anos aproximadamente, foi construído um projeto de extensão na UFES, dentro do Departamento de Psicologia, voltado para a população em situação de rua. Esse projeto, chamado Andarilhos: construindo outros caminhos na cidade, foi proposto por alunos, e é co-coordenado pela então mestranda Gil Kunz, que trabalhava com população de rua e entrou no Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da UFES, com pesquisa sobre os modos de vida da população de rua e eu a orientei. Nunca tinha trabalhado com população de rua e um grupo de alunos procurou a mim e à Gil, de forma que ela assumiu a coordenação técnica e eu a institucional.
BoletIN – Como o projeto Andarilhos atua?
Ana Heckert – O projeto Andarilhos tem algumas frentes de ação: apoio ao Movimento Nacional de População de Rua, entendendo que apoiar é problematizar e fortalecer as lutas vinculadas aos direitos humanos; apoio ao Tá na rua, um boletim informativo do MNPR-ES; e, por fim, começamos a ir aos equipamentos, tentando mapear que rede é essa de políticas públicas que a população de rua acessa ou tenta acessar. Neste processo de acompanhar o movimento, nos deparamos com violação o tempo todo. Sempre tem ações de violação de uma parte da população e acompanhamos, especificamente, o contexto de Vitória. Uma parte da população solicita constantemente a retirada dos moradores de rua das ruas. Na maioria dos casos, essa retirada é feita de forma violenta, entrando a equipe de limpeza da prefeitura e jogando jato d’água e a guarda municipal agindo com a polícia militar.
BoletIN – Há em Vitória algo como a Operação Choque de Ordem, realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro e que, entre suas ações, recolhe moradores/as de rua?
Ana Heckert – Ninguém assume isso, mas o que vemos, cada vez mais – apesar da tentativa de conversa com os gestores municipais e estaduais, e apesar deles negarem que estão protagonizando esse tipo de política –, são agentes de Estado efetuando ações violentas. Não conheço a situação do Rio de Janeiro, mas os próprios moradores de rua têm comunicação com outros estados e sabem que a situação aí é muito delicada. Acho que estamos vivendo, em função dos grandes eventos que vão acontecer nos próximos anos no país, um processo de higienização dos espaços públicos. E o primeiro alvo é a população de rua.
Um outro problema que vem acontecendo, em alguns lugares de forma mais assumida e em outros, mais sutilmente, é a questão da internação compulsória, porque vincula-se a população de rua ao uso de crack e várias pesquisas têm mostrado que não é essa a realidade. A maioria da população de rua não é usuária de crack. Está sendo feita uma pesquisa sobre população de rua por um grupo da Escola de Admardo Serafim de Oliveira, uma escola municipal de Jovens e Adultos em Vitória, em que moradores de rua também participam como pesquisadores e que já se publicou deste estudo em andamento é que o maior consumo é de álcool e não de crack.
BoletIN – A partir do mapeamento que o projeto Andarilhos vem desenvolvendo, como são as redes de políticas públicas que a população de rua acessa ou tenta acessar em Vitória?
Ana Heckert – O objetivo do mapeamento das redes de equipamentos vai além de conhecer os serviços disponíveis para a população em situação de rua. Visamos intervir nas políticas públicas, estando juntos na luta pela garantia de direitos e questionando o posicionamento político na construção dessas ações. Visitamos equipamentos públicos e nos deparamos com técnicos que alegaram despreparo para lidar com uma parcela tão pequena e ao mesmo tempo tão heterogênea da população. Apesar da existência de uma política nacional para inclusão deste segmento, a realidade que encontramos é, muitas vezes, divergente. A população em situação de rua reclama constantemente do descaso no atendimento em determinados equipamentos quando se apresentam como populares de rua e, por conta disso, muitas vezes preferem não procurar atendimento; em alguns locais – onde já se tem um vínculo estabelecido com os técnicos –, o atendimento e o encaminhamento se dão de forma digna.
Esse mapeamento não se restringe aos equipamentos públicos e privados, mas também aos locais utilizados por essa população para qualquer atividade, por exemplo, banho, lavagem das roupas, eventos culturais etc. Como construímos este mapeamento junto com a população em situação de rua, nos mantemos alerta à demanda que esta traz e, a partir daí, visitamos o equipamento. Com a mudança da gestão municipal e mudanças no que tange à Assistência Social em Vitória, suspendemos temporariamente esse processo.
BoletIN – Quais têm sido os desdobramentos do projeto Andarilhos?
Ana Heckert – O Projeto Andarilhos vem sistematicamente apoiando o MNPR-ES, em ações que tentam assegurar os direitos humanos da pessoa em situação de rua, direcionadas a visibilizar as violações de direito que, por vezes, acometem essa população. Essa visibilização se dá ao ajudarmos a redigir boletins e notas de repúdio a diversas situações que interferem no modo de viver nas ruas. Pode-se dizer que o Projeto Andarilhos contribui ao tecer análises junto ao MNPR-ES que visem um movimento social mais conectado com as vidas nas ruas e cobrem do poder público políticas públicas que estejam em consonância com as demandas das ruas.
Por mais que isso pareça uma coisa qualquer, não é. Temos acompanhado no Espírito Santo e no Brasil políticas de governo que pretendem trancafiar e alijar as pessoas do direito de escolha, fazendo isso em nome da vida e da defesa das pessoas em situação de rua. Estranhar esse discurso e pô-lo em análise é algo que o Andarilhos vêm exercitando junto ao MNPR-ES. Os desdobramentos desse modo de funcionar nem sempre são visíveis, mas afirma uma postura ética na direção de uma vida menos amesquinhada.
Leia mais:
>> Edições do boletim Tá na rua no blog do Mov Pop Rua ES
>> Nota pública do Movimento Nacional de População em Situação de Rua do Espírito Santo
>> Página no Facebook do Mov Pop Rua ES
>> Matéria "Vitória ganha boletim voltado para a população de rua" – Lappis
Seja o primeiro a comentar