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Entrevista: Paulo Henrique Martins fala sobre democracia e redes sociais

oficina_paulo_henrique_11.JPGDe passagem pelo Rio de Janeiro esta semana a convite do Lappis, o presidente da Associação Latinoamericana de Sociologia (ALAS), Paulo Henrique Martins, ministrou oficina para os pesquisadores da rede multicêntrica. O BoletIN aproveitou o encontro com o pesquisador para uma breve entrevista onde ele afirma que democracia não é uma concessão e que as práticas sociais em rede podem funcionar como um dispositivo para fazer política. Para ele, o campo da saúde é fundamental para pensar a democratização da sociedade brasileira. Confira.

BoletIN – Queria começar com uma questão que pode ter muitas respostas. Qual a sua leitura de democracia?
Paulo henrique Martins – Existem várias leituras de democracia. Uma leitura boba que se faz é dizer que democracia é o direito de cada um fazer o que quiser. Mas isso não é democracia, isso é despotismo, um regime marcado por profundas desigualdades onde alguns indivíduos se consideram realmente onipotentes. A democracia é um regime fundado numa espécie de solidariedade cívica e moral, em que os indivíduos conseguem compartilhar bens coletivos, representações coletivas, valores coletivos de igualdade, liberdadee solidariedade. E de conformação de um ethos coletivo, tendo a ideia de ethos como sujeito coletivo com um pensar junto e um fazer junto que transcende as dimensões psicológicas e individuais de cada pessoa. Esse é o verdadeiro desafio da democracia.

BoletIN – Isso tem a ver diretamente com relação entre sujeitos.
Paulo Henrique Martins – Isso tem a ver com relação e com nossa capacidade de transcender o lugar de cada um para pensarmos coletivamente o direito de nós dois.

oficina_paulo_henrique_12.JPGBoletIN – Entendendo que não se pode reduzir as práticas democráticas apenas ao voto e ao processo eleitoral, qual o desafio que se coloca para o campo do conhecimento no sentido de pensar a democracia?
Paulo Henrique Martins – Tá havendo uma espécie de drama sobre isso. Porque a democracia oligárquica, burguesa, é a democracia da representação. Essa é a democracia tradicional, liberal. Pela representação, você escolhe seu representante e ele vai representar você. E existe a democracia participativa, pensada mais recentemente e muito estimulada depois da Constituição, como sendo uma democracia em que as pessoas passam a participar mais efetivamente. O que se observa é que esses conceitos não estão mais funcionando corretamente no Brasil. Houve um certo bloqueio dessa ideia da democracia participativa. E nós estamos com dificuldade de sair desse impasse. Nem a democracia representativa funciona porque o nosso sistema judiciário, nosso sistema legislativo, é conservador, nem a nossa democracia participativa tá funcionando.

BoletIN – Que alternativa se coloca?
Paulo Henrique Martins – Nós temos que reiventar a democracia. Nós temos que reinventar o pacto pela cidadania. Essa é a questão fundamental. Nós temos que repensar o lugar da nossa constituição republicana como uma carta básica para a organização de um pacto de solidariedade cívica. Mas eu sinto que a gente tá correndo o risco de uma dissolução da experiência republicana e democrática nesse momento pelo fato de que há uma força corporativista muito grande, os interesses corportativistas são muito importantes.

oficina_paulo_henrique_14.JPGBoletIN – Como a mobilização em rede que você tem discutido pode servir a esse processo democrático e a construção de coletivos?
Paulo Henrique Martins – As redes surgem como processo de individuação. Homens e mulheres independentes, cada um constituindo suas identidades, seus pertencimentos. Cada processo de liberação do ser humano abre uma configuração de rede. Como mulher, você se descobre com outras mulheres; como jornalista, se descobre com outros jornalistas; como profissional de saúde, se descobre com outros profissionais de saúde; como amante de passeios na natureza, se descobre com outras pessoas que são amantes da natureza. Então, a  configuração em rede é produto de um trabalho de abertura das nossas práticas identitárias. Mas isso por si só não teria uma relação direta com a democracia. Pode ter, quando a gente problematiza politicamente nossos processos de deliberação em rede, de consumação das práticas identitárias, e articula isso coletivamente, com relação à sociedade e ao grupo social. Então, a rede passa a funcionar como um dispositivo de fazer política.

BoletIN – E qual seria o verdadeiro papel das práticas sociais em rede no sentido de subverter os modelos autoritários?
Paulo Henrique Martins – Não existe a democracia onde não existem práticas sociais ou redes organizadas, mobilizadas. A democracia real, no sentido de que é uma democracia que abre espaço para a integração dos seres humanos nos sistemas sociais, nunca foi uma concessão. Sempre foi uma conquista das lutas sociais. Então, essas redes são fundamentais para articulação com um sistema atômico. Imagine um  átomo. Você tem um átomo, que ele próprio já é constituído em forma de rede. Se você pegar uma célula, ela é constituída de várias moléculas.  Se você pegar uma molécula, ela é constituida de vários átomos. Com o sistema social é a mesma coisa. Ele é constituido das pequenas redes locais, familiares, de amigos, de profissionais que vão se articulando em grupos mairoes de vizinhança e vão criando as comunidades de vizinhança e vão constituindo sistemas mais efetivos e poderosos. Então, eu não acredito que a democracia seja uma concessão de cima pra baixo. Pode ser que tenha algum governante justo, um bom governante, que ajuda e poderá ajudar através de políticas públicas, recursos, descentralização. Isso pode acontecer e é importante que aconteça. O bom governante favorece a concessão de recursos. Mas a população, a  sociedade tem que se empoderar e assumir para si a responsabilidade da mobilização e da articulação.

BoletIN – Você tem defendido em artigos que a sociologia das redes sociais aponta para um novo paradigma das ciências sociais. O que a gente pode afirmar sobre esse novo paradigma?
oficina_paulo_henrique_13.JPGPaulo Henrique Martins – A sociedade das redes é bem recente. Antes, nos tínhamos a sociologia dos movimentos sociais. No século XX, você pensava através de grandes movimentos sociais, de grandes movimentos sistêmicos como o movimento operário, o movimento sindical, o movimento feminista. Esses movimentos continuam, mas diluídos em uma trama muito mais complexa de movimentos variados. E também por conta dessa insurgência de novas práticas, de novas lutas identitárias de reconhecimento e visibilidade social dos indivíduos. Veja como isso também tem a ver uma descoberta científica. Porque o que você chamava de átomo, era a molécula; depois, se descobriu que dentro da célula você tem as moléculas; e dentro da célula você tem os átomos; e dentro dos átomos você tem os prótons, nêutrons e elétrons. E, depois, está se descobrindo a antimatéria. Quer dizer, quanto mais você abre o sistema da matéria viva, mais você vai descobrindo novas combinações. Ou seja, o indivíduo, como nós conhecemos hoje como individuo, é uma estrutura atômica com certa autonomia de agir, de refletir, de conceber, de criar e recriar; é uma estrutura gerada a partir dessa abertura da sociedade para ela mesma. Cada indivíduo é um lugar de construção da vida social. É é aí que emerge a rede na sua força simbólica, na sua força política. Cada individuo é um lugar de construção e reconstrução da vida social.

BoletIN – Mas não existe a rede sem a experiência do sujeito…
Paulo Henrique Martins – Existe a rede sem a experiência do sujeito desde que o sujeito se insira no clube de futebol, você se insere no grupo. Agora, a consciência política, reflexiva, sobre o seu lugar em rede permite uma mobilização, que favorece uma solidariedade cívica e isso é uma construção democrática.

BoletIN – Como o conceito e a discussão sobre redes deve ser valorizado no campo da saúde?
Paulo Henrique Martins – A gente observa diretamente um diálogo muito intenso entre o poder executivo, Ministério da Saude, órgaos federais e estaduais, e o debate acadêmico. As ciêncais sociais e humanas na saúde, as ciências epidemiológicas, e o poder executivo, eles agem muito junto e agem como uma caixa de ressonância. Então, há muitas experiências e laboratórios acontecendo na saúde que são importantíssimos para pensar a prática democrática hoje. Eu vejo a saúde como um campo muito importante para pensar a questão da democratização da sociedade brasileira.
 

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