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Entrevista: José Ricardo Ayres

DSC02000.jpg O pesquisador fala sobre o cuidado e o XIII Seminário da Integralidade

Cuidado, Integralidade e Trabalho. Esses são os três vértices da discussão que o professor e pesquisador José Ricardo Ayres promete levar para a Conferência Magna, que vai marcar oficialmente a abertura do XIII Seminário da Integralidade, em Cuiabá, em agosto. Numa entrevista exclusiva para o BoletIN, Ayres faz uma profunda reflexão sobre o caminho que leva o cuidado da teoria para a práxis e disse não ser possível existir saúde pública sem passar por um atento cuidado aos sujeitos e às populações.

Para José Ricardo Ayres, o tema do XIII Seminário, “Construção Social da Demanda por Cuidado – revistando o direito à saúde, o trabalho em equipe e espaços públicos e participação”, que retoma uma discussão iniciada em 2005, é esencial para aquilo que considera o grande desafio da atualidade, “a contínua construção do SUS”. Confira aqui a entrevista na íntegra.  

layout_XIII_Seminario.jpgBoletIN –Na abertura do Seminário, você vai ministrar uma Conferência Magna, intitulada “Cuidado: Trabalho e Integralidade nas Práticas de Saúde”.  Hoje, o tema do cuidado atravessa desde as instituições acadêmicas até as políticas públicas e gestão da saúde. O que contribuiu para esse interesse ou essa preocupação sobre o tema?
José Ricardo Ayres – Penso que o que caracteriza a ideia geral de cuidado é uma ativa ocupação com a saúde do outro, na forma de uma ação que cobra reconhecimento e respeito mútuos, capacidade de ouvir e interpretar necessidades e a construção de respostas de modo compartilhado, com confiança e responsabilidade. Esse interesse crescente no cuidado me parece derivar de um conjunto de aspectos, mas eu destacaria dois, dialeticamente relacionados. De um lado, o crescimento impressionante de nossa potência tecnocientífica gera enormes expectativas de domínio do adoecimento, do sofrimento, das limitações e de promoção da longevidade, bem-estar, aptidão física, beleza etc. Mas, de outro lado, esse próprio desenvolvimento vai deixando mais e mais clara a não correspondência imediata entre uma coisa e outra. Iniquidades, desrespeitos, insuficiências, violências, são vividos como realidade inseparável das sedutoras e crescentes ofertas de consumo das tecnologias da saúde. Os serviços e tecnologias são de difícil acesso para a maioria, os resultados das ações são frequentemente frustrantes, as relações com os profissionais estão empobrecidas e deterioradas.  Acho que a guinada na direção do cuidado é, no mínimo, uma reação a esta contradição. É uma certa necessidade de, por um lado, fazer nossas apostas em caminhos menos dependentes da linguagem instrumental das tecnociências. É como se disséssemos: "Que se calem um pouco as máquinas para que possamos ouvir nossas próprias vozes". Mas certamente não queremos que as ciências e as tecnologias silenciem, porque elas também falam de uma maneira que nos interessa, que foi inventada por nós mesmos. O que queremos é que elas falem mais para nós e menos por nós, que falem daquilo que é de fato relevante, que faça sentido em nosso cotidiano, e, especialmente, que falem para todos nós. Mas isso é o mínimo, porque o queremos mesmo com o cuidado é que as ciências e técnicas falem muitas línguas, que estejam sempre aprendendo novas línguas e que não precisem calar outras vozes para se fazer ouvir.     
 
BoletIN – Por que o discurso sobre o cuidado ainda está tão distante das práticas? Como sair da reflexão para a práxis?
José Ricardo Ayres – Em um certo sentido o cuidado não está distante da prática. Se podemos hoje teorizar sobre ele, se é um conceito, é porque de algum modo ele já está na prática. Mas essa presença é difusa, esparsa, pouco orgânica. As tecnociências de base biomédica tornaram-se tão centrais e dominantes que o seu sentido propriamente prático, isto é, o tipo de valor, interesse, significado que subjaz à busca do seu poder instrumental, foi perdido de vista. Criou-se um estranhamento entre esse aspecto instrumental e o sentido, digamos, existencial das ações de saúde. A esta configuração tenho me referido como a disjunção entre os horizontes de êxito técnico e de sucesso prático na orientação das ações. Assim, podemos dizer que o conceito de Cuidado aspira participar das práticas de saúde de modo reconstrutivo, como um elemento que facilite a identificação dessa disjunção no cotidiano das práticas e a percepção e difusão das possibilidades de superá-la, aí, no cotidiano. Que modos de operar das ações e dos encontros nas práticas de saúde podem efetivamente orientar-nos na direção dos projetos de felicidade que nos caracterizam como pessoas e comunidades em busca da saúde? Como superar o ilusório e danoso isolamento entre êxito técnico e sucesso prático, como se fossem questões de natureza completamente diversa, na definição dos horizontes normativos das ações de saúde? Se o conceito de cuidado ajudar a responder a estas questões estará deixando mais clara uma estreita relação que já desde sempre tem com a prática. Então o desafio que se coloca, de passar da reflexão à práxis, começa na própria compreensão da origem e destino práxico, ou pragmático, deste conceito. Penso que a partir daí trata-se de disseminar esse debate e não perder oportunidades, na capilaridade dos serviços e instituições que de alguma forma lidam com saúde, de aproveitar os aprendizados que esta reflexão, conduzida ao cotidiano da prática, pode produzir;  transformá-los em propostas de organização das ações de saúde, avaliar essas experiências. Avaliar de forma interessada não apenas em termos de quantidades e resultados, mas em termos de qualidades e de efeitos em nossa formação como comunidades e pessoas; em termos da capacidade de nossas ações deixarem-se interpelar por nossos projetos de felicidade e moverem-se por nossos encontros. Como se vê, é um processo de transformação cultural. Como tal, e pensando mais particularmente no campo institucional da saúde, depende do desenvolvimento de tecnologias de atendimento, de mudanças estruturais nos serviços, de aperfeiçoamentos nos modelos de organização da atenção, de novos processos de gestão, de transformação nos processos de formação profissional e educação permanentes. E não há um lugar para começar. Essa mudança já está, ao menos em potência, nessas diversas perspectivas, e devem se dar simultaneamente, cada processo alimentando o outro.       
 
BoletINÉ possível existir saúde pública sem passar por um atento cuidado aos sujeitos e às populações?
José Ricaro Ayres – Não, não é possível. Embora nós tenhamos a tendência a pensar no cuidado como uma relação interpessoal, entre profissional e usuário, isso seria uma contradição nos próprios termos, uma vez que não há projeto de felicidade que nasça e faça sentido fora da polis, isto é, da cidade, da vida compartilhada.  Assim toda possibilidade de produzir ações de saúde que façam sentido sempre terá relação com contextos intersubjetivos, desde as relações interpessoais, familiares, do bairro, até a comunidade global no limite. Por outro lado, as populações não são entidades abstratas, elas são construídas pelas interações cotidianas das pessoas. O cuidar e o cuidar-se repercutirão também sempre sobre outros . Mas, claro, cabe estarmos atentos para as diversas possibilidades de apreender e responder a necessidades e possibilidades de cuidado de diferentes abrangências, cuidando de diferentes modos, com diferentes sujeitos e recursos em cenários diversos.   

DSC02040.jpgBoletINOnde as temáticas do Cuidado, do Trabalho e da Integralidade se encontram?
José Ricardo Ayres – O difícil é saber onde eles não se encontram! Quando falamos de Cuidado nos serviços de saúde estamos falando já, imediatamente, de Trabalho. O que justifica todo encontro cuidador ocorrido aí, ou a partir daí, é a produção de algum bem ou serviço. A diferença em relação a outros processos de trabalho, e isso é bastante conhecido, é que o produto do trabalho em saúde é consumido no ato mesmo em que é produzido. Mas, quando pensamos o trabalho em saúde na perspectiva reconstrutiva do Cuidado, então temos que considerar ainda uma outra diferença: o objeto de trabalho e o sentido de sua transformação devem ser uma produção compartilhada entre o trabalhador da saúde e o beneficiário desse trabalho. Aí chegamos à Integralidade. O trabalho operado no e pelo Cuidado deverá ser construído segundo uma totalidade de sentido. Integralidade não significa cuidar de tudo, significa cuidar em um todo. Destacando-se sobre o pano de fundo das singulares condições de vida e dos projetos de felicidade de cada pessoa ou comunidade, ganham contorno as formas e os significados das ações cuidadoras, por meio e para além do significado que assumem nesta totalidade compreensiva as lesões, disfunções, dismorfias, adoecimentos, sofrimentos, limitações, riscos, vulnerabilidades, aspirações, desejos etc. Compreendido desta forma o sentido de sua ação, a atenção à saúde estará pronta não apenas a tomar as decisões mais sábias em relação a que e como fazer com os recursos terapêuticos disponíveis, mas também identificar outras necessidades para o trabalho que, concomitantes ou em diversos prazos, demandam os profissionais e serviços.   

BoletINVocê poderia apontar algumas possibilidades para a construção de caminhos para o cuidado integral de indivíduos e populações na Atenção Primária a Saúde?
José Ricardo Ayres – Estas possibilidades têm sido largamente discutidas por profissionais, gestores, ativistas, em diversos espaços, como esse do LAPPIS, seus seminários, suas publicações. Mas eu sintetizaria esses caminhos da integralidade em quatro grandes "avenidas", ou eixos, que, na busca de uma totalidade compreensiva para orientar o cuidado, permitem que nos orientemos na direção do princípio da integralidade na Atenção Primária à Saúde. Esses eixos é que têm norteado as práticas e as reflexões de nossa equipe no Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, da Faculdade de Medicina da USP, o C.S. Escola Butantã. O primeiro eixo é o das necessidades, isto é, na Atenção Primária, em especial, é imprescindível que estejamos abertos a identificar e compreender demandas e necessidades que extrapolam o repertório com o qual estamos mais habituados, já desde a nossa formação nas escolas de medicina, enfermagem, odontologia, psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, etc. O que reclama também, e talvez isso seja ainda mais difícil, que consigamos interpretar demandas singulares em relação a aspectos com os quais estamos tão acostumados a lidar que tendemos a universalizar, generalizar de forma redutora e preconceituosa. De outro lado, se construímos com riqueza o "que fazer?", com uma leitura "suficientemente boa" das necessidades, precisaremos também enriquecer os meios de responder a elas, e aí entram aqui dois outros eixos importantes. Um é o das finalidades, isto é, precisamos lançar mão de processos de trabalhos em saúde nas suas quatro conformações básicas – promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação. Raramente um cuidado integral na atenção primária vai poder abrir mão de alguma dessas lógicas, e sempre precisará integrá-las de algum modo na construção de projetos de cuidado. O outro eixo é o que temos chamado de eixo das articulações. É quase intuitivo que, para podermos lançar mão de recursos e ações nas quatro conformações dos processos de trabalho em saúde e integrá-los em movimentos coerentes e exitosos, precisaremos articular diferentes atores e cenários de prática. Nesse sentido, interdisciplinaridade e intersetorialidade, entendidas não como algum protocolo ou princípio abstrato e a priori, precisam ser construídas a partir dos projetos concretos de cuidado, com maior ou menor grau de compartilhamento – desde uma articulação mais circunstancial, conforme necessidades de cuidado de um caso específico, até as cooperações mais sistemáticas e institucionalizadas, em programas de alcance populacional. Por fim, não podemos esquecer que não conseguiremos trabalhar na perspectiva da integralidade se o eixo das interações não for privilegiado na construção do cuidado. Se lembrarmos do que foi dito já desde o início desta entrevista, ficará claro que, sem uma efetiva e legítima relação eu-outro, construída com base na confiança e responsabilidade mútuas e dirigidas a uma autêntica fusão de horizontes, não encontraremos os valores éticos, os princípios morais e políticos e os resultados técnicos e práticos que almejamos.           
 
BoletINE quais os maiores desafios desse percurso?
José Ricardo Ayres – Nossa! Os desafios são muitos e grandes, ou ninguém se preocuparia em teorizar sobre o Cuidado. E naqueles quatro eixos a que eu estava me referindo. Mas acho que o mais central de tudo é garantir um contexto de práticas minimamente favorável para que tudo isso possa ser construído, e não tenho dúvidas que esse contexto é um SUS forte, bem financiado, público nos seus compromissos e modus operandi, orientado pela lógica dos Direitos, com participação ativa dos gestores, cientistas, técnicos, ativistas, profissionais e usuários no sentido de seu constante exame crítico e aperfeiçoamento.
 
BoletINPor último, professor, o tema geral do XIII Seminário de Integralidade é “Construção Social da Demanda por Cuidado – revistando o direito à saúde, o trabalho em equipe e espaços públicos e participação”, que retoma um debate ocorrido na edição de 2005 dos seminários da Integralidade. Como você vê a importância de manter vivo esse debate?
José Ricardo Ayres –Esse debate é fundamental! Veja que identifico todos os termos da proposta naquilo que considero o grande desafio, a contínua construção do SUS. Fazer essa espécie de balanço 8 anos depois promete ser uma experiência muito instigante e cheia de potenciais.
 
BoletINE qual a sua expectativa para esse evento de agosto, que pretende reunir professores, estudantes, gestores e pesquisadores em saúde em um encontro que já faz parte da agenda anual da saúde coletiva?
José Ricardo Ayres – Eu sempre vou muito feliz e esperançoso para esses seminários do LAPPIS. Fico chateado quando não consigo ir, como aconteceu ano passado, justo esse, tão interessante, ocorrido em Rio Branco, com uma agenda muito relevante. Mas este ano felizmente estarei lá de novo e, como sempre, minha expectativa é de trazer de volta muito aprendizado, muita inquietação, muita inspiração, muitos afetos positivos do encontro com tanta gente interessada no valor da integralidade e disposta a trabalhar publicamente por ela. Enfim, o seminário do LAPPIS promete sempre ser um potente recarregador de energias! 
 
Serviço:
 
XIII Seminário da Integralidade: Construção Social da Demanda por Cuidado
Onde:Cuiabá (Universidade Federal de Mato Grosso e Hotel Fazenda Mato Grosso)
Quando:de 13 a 16 de agosto
Inscrições gratuitas: https://www.lappis.org.br/site/inscricao-xiii-seminario.html
Confira a página do Seminário: https://www.lappis.org.br/site/eventos/xiiiseminario.html
 

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