O Blog Saúde Brasil traz esta semana um artigo do pesquisador Ricardo Ceccim, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre a lei federal que criou a Residência em Área Profissional da Saúde. Intitulado “Residências em Saúde, Educação Profissional e o SUS-Escola”, discute, entre outras questões, o argumento de que as residências devem estar vinculadas às instituições de ensino superior. O BoletIN reproduz o artigo e convida à reflexão.
Por Ricardo Burg Ceccim. *
Publicado originalmente no blog Saúde Brasil
Primeira Questão
A proposta de Residência em Saúde ganhou lugar legal pela Lei Federal nº 11.129/2005, que criou a Residência em Área Profissional da Saúde e a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde. É preciso destacar: a lei criou residências em áreas profissionais da saúde, ou seja, não as criou em ou por profissões. Exatamente por este motivo a Comissão é que seria Multiprofissional, evitando-se Comissões organizadas em ou por profissão, como no antecedente da residência média, mantida, conforme a Lei. A residência criada foi em área profissional da saúde, tendo resultado de proposta apresentada pelo Ministério da Saúde e integrando a política nacional de saúde, aprovada junto ao Conselho Nacional de Saúde e pactuada na Comissão Intergestores Tripartite, ainda em 2003. O Projeto de Lei do Executivo tramitou em 2004, tendo sido objeto inicialmente de uma Medida Provisória no alvorecer do ano de 2005. Especificamente, portanto, a residência em área profissional da saúde deveria contemplar interesses e necessidades do Sistema Único de Saúde, atendendo determinações constitucionais quanto à formação do quadro profissional da área da saúde (CF, Art. 200). O fato de haver uma Comissão Multiprofissional para as Residências em Saúde no Ministério da Educação viabilizaria que outras residências da área da saúde fossem autorizadas como educação profissional pós-graduada, tal como previsto nos artigos 39, 40 e 41 da LDB, onde a educação profissional abrange cursos de graduação e pós-graduação, organizados de acordo com as diretrizes curriculares nacionais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação. A educação profissional, segundo a LDB, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, onde cursos de educação profissional possibilitam a construção de diferentes itinerários formativos, observadas as normas do respectivo sistema e nível de ensino. A educação profissional deve ser, conforme a Lei, desenvolvida em articulação com o ensino regular ou por diferentes estratégias de educação continuada, em instituições especializadas ou no ambiente de trabalho. Importante dizer que, para a Lei, o conhecimento adquirido na educação profissional, inclusive no trabalho, pode ser objeto de avaliação, reconhecimento e certificação para prosseguimento ou conclusão de estudos, ou seja, expedição de certificado de pós-graduação profissional.
Segunda Questão
Se para as Residências Médicas o certificado de pós-graduação profissional equivale ao de especialidade médica, isto resulta de acordo entre Comissão Nacional de Residência Médica, Associação Brasileira de Medicina e Conselho Federal de Medicina. Este tipo de procedimento orientaria, no futuro, a constituição de câmaras técnicas para as residências em área profissional da saúde, senso amplo, ainda aí sem a conotação de residência em ou por profissão, posto que asáreas profissionais para as câmaras técnicas deveriam ser áreas do trabalho no SUS: saúde da mulher, saúde da criança e do adolescente, saúde bucal, clínica da atenção básica à saúde, saúde coletiva (educação, promoção e vigilâncias no campo da saúde; planejamento, gestão e avaliação no setor da saúde), atenção e assistência farmacêutica, saúde mental, clínica das doenças crônicas não transmissíveis e saúde pública (intervenções nutricionais, biomédicas, veterinárias e agrárias no campo da saúde), entre outras. As especialidades determinantes ao trabalho no SUS seriam objeto de acordos entre o Ministério da Saúde e os Conselhos Federais e Associações de Ensino das profissões de saúde implicadas. A modalidade legal da Residência viria para certificar os ambientes de trabalho como ambientes-escola, assim como ocorre desde os anos 1940 com os hospitais universitários e as clínicas-escola. Entretanto, agora, também o SUS-Escola (seus órgãos de gestão e de serviço). O SUS conquistaria o lugar previsto pelo Art. 81 da LDB: cursos e instituições experimentais de ensino. Toda a legislação do SUS é farta em localizar o SUS e seus serviços como escola, como ordenadores da formação e como os melhores lugares de ensino-aprendizagem do trabalho em saúde. A complementação desejada com o MEC visava à integração intersetorial, também prevista pela Lei Orgânica da Saúde (Art. 12). As residências em saúde seriam residências em trabalho no SUS, podendo haver as residências em especialidades das profissões prioritárias ao SUS e outras conforme acordos com as profissões, não necessariamente com chance de bolsas pelo governo em Saúde, Educação ou Ciência & Tecnologia. As residências criadas seriam aquelas relativas ao trabalho no SUS, principalmente pelas prioridades e legislação do SUS, mas caberia ao setor da Educação e demais setores de políticas públicas ordenarem as demais residências existentes no país, tais como: clínica e cirurgia em animais, agricultura, direito, artes, tecnologias de informação, biologia marinha, cadeia alimentar produtiva, entre outras.
Terceira Questão
Não faz nenhum sentido, em hipótese alguma, na minha opinião, o argumento de que as residências devam estar vinculadas às Instituições de Educação Superior. Esta é apenas uma possibilidade elogiável. As residências podem, mesmo, ser de Universidade, mas não podem deixar de ser dos serviços, em especial os do SUS e de seus órgãos de gestão ou Escolas de Saúde Pública. Não faz nenhum sentido, em hipótese alguma, na minha opinião, a exigência de graus acadêmicos aos preceptores de residência, além da experiência profissional na área para a qual exercem a preceptoria. Até a palavra preceptoria contraria essa noção de grau acadêmico. De outra parte, não podemos, em hipótese alguma, contrariar a história e a tradição do SUS, sob pela de anular o movimento histórico que traduziu o setor da saúde, no Brasil, como única política social de relevância pública e única ordenadora de seus quadros profissionais. Igualmente – ou bem pior – é igualizar a avaliação, reconhecimento e certificação das residências com o ensino de graduação. Em primeiro lugar, a lógica das Residências é a da educação profissional para fins de certificação; em segundo lugar é curso de profissionalização pós-graduada, não sendo compatível com a avaliação dostricto sensu, destinado à formação de pesquisadores ou à concessão de grau. A profissionalização, desde que existe educação para o fazer profissional dá-se com o concomitante exercício das respectivas funções, sob a orientação do mestre, o assim chamado mestre de ofício, que ensino noe pelo trabalho. Na história da educação profissional, mesmo nos casos em que se exige o mais alto grau de especialização, o sistema de aprendizado toca ao encargo dos mestres de ofício, como às próprias corporações de especialistas, que ensinam, titulam, acreditam e examinam candidatos ao título de especialista. Não por outro motivo, a residência sempre foi considerada o padrão-ouro na formação de especialistas médicos. Inclusive quando há o requerimento de longa duração, por isso encontramos residências médicas com extensão de 5 ou 6 anos. À educação superior cabe a tarefa do letramento na cultura científica destinada aos membros da sociedade, conforme o tipo de atividade profissional a que se dediquem. O conceito e o fato das residências traz o princípio educativo do trabalho (imanente), enquanto à educação superior cabe o lugar de escola e elaboração da cultura – técnica e tecnológica – introduzida na ordem social. Na Residência, trata-se da união entre formação intelectual e trabalho produtivo, unificação da instrução com a produção, por isso formação profissional, tecnológica, politécnica, em unidade entre teoria e prática, em unidade entre formação profissional e formação no ou para o trabalho. Fora isso, o lugar é a escola, a universidade, a pós-graduação stricto sensu, a pesquisa, o letramento superior. Cabe à Residência (por isso tanta defesa de seu lugar no SUS) a omnilateralidade, a busca da práxis, mais que da prática, a experiência de trabalho no SUS, mais que na especialidade. Quem sabe mais sobre o trabalho no SUS? Os seus órgãos de gestão, serviços e escolas de saúde pública ou as universidades às quais o SUS alcança recursos e editais para que mudem, como o Pró-Saúde e o PET-Saúde? Aomnilateralidade só se realiza como práxis, ela depende da intersecção educação-trabalho. Não por acaso, a designação das residências integradas, uma insistência da produção intelectual inaugural às residências em área profissional da saúde e na sua possibilidade multiprofissional. Nas residências integradas vêm ainda as relações interprofissionais e os intercâmbios do/no quadrilátero da formação. É nas residências integradas que a politecnia aparece como proposta de educação profissional de grande importância e possibilidade para que se consolidem as condições de formação pela omnilateralidade: de formação para o SUS, de formação para a integralidade da atenção e de formação como princípio participativo na interação com a sociedade.
Ricardo Burg Ceccim é Professor Associado IV, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pesquisador de Produtividade do CNPq em Educação e Ensino da Saúde.
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