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“Pobre, mas eficiente” – Temporão fala sobre o SUS

Entrevista publicada na revista Carta Capital (16/04). Por Leandro Fortes

 
CartaCapital: Por que o SUS ainda é encarado como um serviço precário e caótico no Brasil?
José Gomes Temporão:Há um subfinanciamento crônico do SUS. O Brasil gasta cerca de 1 real por dia por pessoa para manter o sistema público de saúde. Os Estados Unidos gastam o equivalente a 34 reais por dia. Isso faz com que esse sistema gigantesco só se viabilize por meio, basicamente, da sub-remuneração dos profissionais de saúde, que ganham mal, e da sub-remuneração dos prestadores de serviços.

CC: O SUS é visto apenas como um serviço para pobres, não?
JGT:Tem outra questão, de fundo ideológico. É a dualidade da saúde como um direito universal, e o direito da saúde como um bem que se compra. A classe média foi sendo expulsa do sistema. E não só a classe média, mas o operariado organizado também, e há décadas. Um dos pontos mais valorizados dos acordos coletivos de trabalho é, justamente, o plano de saúde privado. E, nisso, temos alguns paradoxos. Os que idealizaram e defenderam a construção do SUS não o utilizam. Os próprios ideólogos, os sanitaristas, os médicos, os enfermeiros, também não. Trabalham no SUS e usam planos privados. Os políticos, os deputados, vereadores, senadores, governadores, a elite dirigente, enfim, não usa. Então, há essa contradição.

CC: O senhor usa o SUS?
JGT:Tenho um plano de saúde da Fundação Oswaldo Cruz, de onde sou funcionário. Eu, eventualmente, uso os serviços de colegas de turma. O médico tem essa relação de colega para colega.

CC: A classe média não usa, ou não percebe que usa, mas fala mal do SUS. O sistema está, definitivamente, estigmatizado?
JGT:Normalmente, as piores avaliações do SUS são de quem não usa. Essas pessoas não lembram, ou não sabem, que o SUS tem uma abrangência muito maior e presta serviços que elas não percebem. Toda a vigilância sanitária e o controle de alimentos, cosméticos e medicamentos são garantidos pelo SUS. A política de vacinação, que todo mundo usa, é pública, assim como a política de transplante de órgãos. Os planos de saúde realizam, parcialmente, alguns transplantes, como de rim. O atendimento de urgência e emergências nas grandes capitais é feito nos prontos-socorros municipais. Quem sofre de doenças crônicas ou raras e é obrigado a tomar medicação muito cara, só pode recorrer ao SUS.

CC: Qual é, então, o grande mérito do SUS?
JGT:Partimos de um sistema centralizado, sem nenhum controle social, corrupto, totalmente privatizado e centrado num esquema de atenção hospitalar. Em 20 anos, construímos um sistema radicalmente descentralizado, com controle social, com conselhos e conferências, um modelo em que a participação do setor público, particularmente na atenção primária, cresceu muito. Fala-se muito em reforma do Estado e o SUS, na prática, é uma profunda reforma do Estado. A partir de 1988, veio essa conquista de tratar a saúde como direito de cidadania, um direito de todos. Isso teve um impacto brutal, porque, da noite para o dia, 80 milhões de brasileiros passaram a ter direito à saúde constitucionalmente garantido.

CC: O gigantismo do SUS é um mérito ou um problema?
JGT:Houve uma ampliação do acesso ao serviço que antes era restrito. Antes, as pessoas morriam sem atendimento.

CC: Não é estranho a expansão do SUS ter sido acompanhada de um crescimento igual, senão maior, dos planos privados?
JGT:A saúde passou a ser uma mercadoria como qualquer outra. As seguradoras oferecem pacotes, produtos, tudo para atrair a classe média. E, agora, mais do que nunca, porque 20 milhões ascenderam das classes D e E para a classe C. Essas pessoas se vêem fascinadas pelo status de ter um plano de saúde, mesmo que seja uma coisa precária. Elas só vão perceber o problema quando precisarem ser atendidas e descobrirem que, muitas vezes, o tal plano não funciona de verdade. O SUS, embora público, não é estatal. O setor privado, sobretudo o filantrópico, é responsável por 50% das internações e atendimentos de saúde. Mas há um tratamento de dupla porta de entrada: enfermaria para os pacientes do SUS, quartos para os pacientes de planos privados.

CC: É uma regra geral?
JGT:Há uma diferença entre a percepção do SUS na maioria dos municípios de pequeno e médio porte, onde a satisfação em relação ao sistema é alta, e nas periferias das grandes cidades, onde há filas e demora nos atendimentos. O município do Rio de Janeiro é um caso clássico. Lá, a rede de atendimento primário é péssima, embora haja grandes centros de excelência médica. Temos de mudar o modelo no qual toda oferta de atendimento é centrada nos prontos-socorros dos hospitais. Nisso, inclusive, o Rio é a síntese do mau exemplo. O sistema lá foi montado para receber toda a pressão pelas urgências dos hospitais.

CC: Por que o Rio de Janeiro gera tantas crises da saúde?
JGT:Por conta de questões estruturais e conjunturais. Por ter sido capital do País, herdou a maior rede pública de hospitais do Brasil. O carioca está acostumado a usar hospital para resolver problemas de saúde. O Rio é a capital do Ministério da Saúde, da Secretaria de Saúde estadual e da municipal. Cada esfera dessas tem uma rede gigantesca de hospitais e serviços, mas nunca trabalharam de maneira integrada e articulada.

CC: Não se integram apenas por questões políticas?
JGT:Tem questões históricas e conjunturais. Temos essa dificuldade de concepção por parte da prefeitura do que seja atendimento à saúde. Em 2001, eu era subsecretário do Sérgio Arouca (sanitarista falecido em 2003, um dos idealizadores do SUS), no início do primeiro governo Cesar Maia na prefeitura, e nós saímos depois de cinco meses, exatamente por causa dessa discordância. (Cesar Maia exonerou Arouca, secretário municipal de Saúde, por e-mail.)

CC: O prefeito do Rio disse que o senhor foi demitido porque era preguiçoso e incompetente.
JGT:Ele está usando os mesmos termos que usou contra o Sérgio Arouca, na época. Aliás, acrescentou que o Arouca era alcoólatra. É uma tentativa de me ofender, mas eu não vou entrar nessa briga. O fato é que nós oficiamos o prefeito Cesar Maia, em 2001, inúmeras vezes, sobre o risco de uma epidemia de dengue no Rio, por conta da falta de medidas de prevenção. Ele desconsiderou todas as medidas propostas e, em 2002, tivemos a maior epidemia da história do Rio de Janeiro. Essa epidemia de agora, perto daquela, é pinto. Aquela foi gigantesca, com mais de 200 mil casos, quase 100 mortos. Entregamos ao prefeito um projeto, em 2001, de implantar 650 equipes de atendimento de saúde para mudar radicalmente a organização do sistema. O projeto foi engavetado.

CC: E agora, como está a situação no Rio de Janeiro?
JGT:Quando a gente entrou na crise, de janeiro para cá, começou a morrer menos gente. A dengue está relacionada, diretamente, às condições de vida, moradia e saneamento. Essas questões estão distantes da governabilidade das autoridades de saúde. Isso envolve oferta regular de água de qualidade, esgoto, recolhimento regular de lixo, obras de infra-estrutura para garantir qualidade ambiental. E tem a dimensão assistencial. É preciso atender as pessoas e reduzir ao mínimo os óbitos. Aí, uma rede de atenção primária muito bem organizada é crucial. Porque, quanto mais precoce é o diagnóstico e mais cedo se iniciar o tratamento, melhores serão os resultados. No Rio, houve alto nível de casos e óbitos porque as pessoas foram para a fila do pronto-socorro esperar horas por um atendimento de má qualidade.

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