Efeito OSS atinge rede de hospitais
O governo estadual finalmente reconhece que o maior problema da assistência médico-hospitalar do SUS, hoje, é o subfinanciamento ao declarar que pagará 300% da tabela do SUS para contratar as organizações sociais (OSS). Em artigos anteriores já havíamos assinalado o problema do financiamento como a principal causa das dificuldades que afligem os usuários do SUS necessitados de cuidados hospitalares.
Entretanto, a solução não é apenas aumentar o valor da tabela do SUS para as organizações sociais, porque ao conceder 300% às OSS surgem novos conflitos com hospitais filantrópicos e privados que prestam serviços ao SUS. Como não conceder os mesmos valores à Santa Casa, por exemplo, tradicional parceira do sistema público de saúde? E o Hospital Geral, o Santa Helena, a Santa Casa de Rondonópolis, o São Luís de Cáceres, o Santo Antônio de Sinop? E os mais de 20 hospitais públicos municipais, como os prontos-socorros de Cuiabá e Várzea Grande, que permanecem com as portas abertas porque hoje são financiados com muita dificuldade por suas respectivas prefeituras. Ou serão “atendidos” apenas alguns hospitais filantrópicos e/ou municipais e outros não?
Uma opção para não paralisar a rede hospitalar contratada e conveniada seria aumentar os custos hospitalares do SUS estadual em 300%, com recursos próprios da receita estadual. Considerando que em 2010 o Ministério da Saúde repassou 142 milhões para as internações hospitalares em Mato Grosso, em 2011 o governo estadual desembolsaria mais 426 milhões de seu próprio orçamento, além dos recursos federais transferidos. Se esta era a solução para diminuir os custos dos hospitais públicos estaduais (cinco hospitais regionais), a emenda sairá muito mais cara que o soneto.
Mas o gasto público em saúde será ainda maior, pois os trabalhadores e profissionais de saúde concursados e lotados nos hospitais públicos a serem transformados em organizações sociais, que não forem aproveitados ou que não quiserem se sujeitar a trabalhar para as OSS, continuarão sendo pagos pelo governo estadual. De quanto será o gasto?
E o apregoado milagre das OSS, será verdadeiro ou será mais uma promessa vazia, tal qual a filosofia do Dr. Pangloss? Vejamos o exemplo tantas vezes repetido de São Paulo. Não há dúvida de que no estado de São Paulo temos o melhor sistema de assistência médico-hospitalar pública do Brasil. Mas esta condição decorre da existência de uma rede constituída por 50 hospitais públicos estaduais sob regime de administração direta, 450 hospitais filantrópicos e um terço dos hospitais universitários do país. O governo paulista emprega em torno de 70.000 servidores públicos na área da saúde e o orçamento da pasta é equivalente ao orçamento de todo o estado de Mato Grosso. Os hospitais públicos transferidos para a gestão das organizações sociais não passam de 20, todos novos hospitais, com exceção de um. Conclusão: o peso das OSS no conjunto da assistência médico-hospitalar no estado de São Paulo é menor que 5%. Portanto, atribuir às OSS os bons resultados do sistema público paulista é mistificação pura e simples.
Finalmente, resta o argumento da maior eficiência das organizações sociais na gestão dos hospitais públicos. Uma tese de doutorado recente analisa implantação do modelo de OSS. O trabalho, intitulado “Organizações Sociais de Saúde do estado de São Paulo: inserção privada no SUS e gestão financeira do modelo pela Secretaria de Estado da Saúde” (disponível em http://observasaude.fundap.sp.gov.br/BibliotecaPortal/Acervo/Tese%20Final.pdf ), teve como objetivo discutir as questões referentes aos modelos centrados na administração privada de unidades de saúde no âmbito do SUS. Segundo a pesquisadora, a economista da Fundap Maria Luiza Levi Pahim “os resultados sugerem que o governo do Estado de São Paulo não foi capaz de criar uma lógica de controle financeiro por resultados. O modelo opera em condições bastante flexíveis, com custos crescentes e prejuízos para sua gestão econômico-financeira por parte do estado. O estudo também demonstra as fragilidades do controle estadual dos preços pagos pelos serviços prestados pelas OSS. Os gastos com o modelo OSS integram o grupo de despesas que ganharam mais espaço no orçamento da saúde desde 2002”. Para ela, embora não tenha sido o foco do estudo, “os achados sugerem que possíveis melhorias de desempenho destas unidades se justifiquem pelas suas melhores condições de operação se comparados às unidades geridas diretamente pelo estado”.
Finalmente, eficiência não pode ser o único valor a ser considerado em uma organização pública. Os campos de concentração nazistas e as atuais organizações do crime organizado são modelos de eficiência. E sua finalidade? Tão importantes quanto a eficiência são outros valores como a equidade e os valores democráticos e éticos. Uma das maiores finalidades de uma organização pública é a defesa e a promoção da cidadania.
Exemplos
Conforme sabemos, o SUS está subfinanciado e que as OSS propostas como solução mágica não fazem milagres e podem gerar mais despesas que resultados. Até mesmo porque não resolvem os problemas reais que afligem a assistência médico-hospitalar pública de nossa população e aumentarão a precariedade dos vínculos empregatícios dos trabalhadores e profissionais de saúde pública, gerando mais instabilidade no sistema.
A solução de aumentar o valor da tabela do SUS em até 300% é outro tiro no pé: ou se faz para toda a rede hospitalar contratada, e aí os custos com internação se tornam impagáveis, ou o sistema fica ingovernável. É por essa razão que no SUS a definição dos valores da tabela é realizada pelo gestor federal, pelo Ministério da Saúde. E é também pela mesma razão que não se aumenta o valor da tabela do SUS em Cuiabá sem aumentar em Várzea Grande e nos demais municípios. A título de exemplo: há alguns anos, quando o município de Cuiabá aumentou o valor da tabela para o parto, diminuíram dramaticamente os nascimentos em Várzea Grande.
Pergunta-se: o que pensarão os dirigentes dos hospitais filantrópicos quando confirmarem a informação oficiosa de que a Secretaria Estadual de Saúde “assumiu” a gestão do Hospital São João Batista, de Diamantino, em dezembro próximo passado, e estabeleceu um contrato de gestão com a Fundação São Camilo no valor de 380.000,00/mês, quando o faturamento mensal do hospital era em torno de 70.000,00/mês? Se o governo estadual tinha recursos financeiros disponíveis, por que permitiu o desabastecimento dos seus hospitais regionais e não transferiu recursos suficientes para os municípios tocarem seus hospitais e unidades de urgência como em Cuiabá, Várzea Grande, Rondonópolis, Barra do Garças e do Bugres, Alta Floresta e Água Boa, entre outros? E por que não aumentou os valores pagos aos hospitais contratados pelo SUS, a maioria deles parceiros de longa data do SUS? E se não tem os recursos financeiros suficientes para cobrir estas novas despesas, como honrará seus compromissos?
Retomando, quais seriam os problemas reais da rede hospitalar pública? Podemos relacionar alguns, além do subfinanciamento: faltam leitos hospitalares; política de saúde equivocada; inexistência de uma rede integrada de serviços; má gestão da coisa pública. Hoje trataremos apenas da falta de leitos públicos.
Há quase um consenso na sociedade mato-grossense que faltam leitos hospitalares na capital e em Várzea Grande. Leitos hospitalares públicos, bem entendido, e não leitos hospitalares privados que não atendam aos usuários do SUS. Cuiabá é a única capital brasileira que não tem um hospital de clínicas público e estadual. Aqui mesmo na região temos o Hospital Rosa Pedrossian, em Campo Grande, e o HUGO, em Goiânia, entre outros estabelecimentos. O governo estadual não cumpre o dever de casa mais elementar que é garantir o atendimento da população vinda do interior em busca de assistência especializada hospitalar, com serviços próprios e de qualidade. É necessário retomar os investimentos para a construção de novas unidades hospitalares. Está à vista de todos o esqueleto do Hospital Central a assinalar a falta de compromisso da gestão estadual com a saúde pública. O projeto de construção do Hospital da Criança, ao lado do Hospital Central, foi engavetado nos últimos nove anos. O Hospital Metropolitano em Várzea Grande, que seria o hospital da Baixada Cuiabana, não mais faz jus ao nome, reduzido a menos da metade dos leitos planejados (200 leitos) e transformado em hospital de baixa resolubilidade, adequado a municípios de pequeno porte. Os hospitais privados adquiridos pela Secretaria de Saúde do Estado para resolver os problemas (de quem?) nunca mais funcionaram como hospitais ou até mesmo como serviços ambulatoriais mais especializados. A construção de duas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) não resolve o problema da carência de leitos na capital que já possui cinco policlínicas com a mesma finalidade.
E as novas instalações do Hospital Universitário Júlio Müller (HUJM)? No passo em que andam as providências talvez fique pronto para a Copa do Mundo, mas a de 2064. Desde 2007, existe uma emenda da bancada parlamentar de MT e, passados quatro anos, não se fez a licitação da obra e não há previsão de quando se fará. Parece que a obra não é prioridade do Ministério da Educação, que ainda não transferiu os recursos financeiros para a UFMT. A questão é mais grave quando se sabe que um dos pontos principais que pesou a favor de Cuiabá, quando escolhida para uma das sedes da Copa do Mundo, foi o compromisso assumido de ter o novo hospital universitário pronto para o evento. A menos que a comunidade universitária e a sociedade mato-grossense se mobilizem a favor do hospital, já podemos antecipar um dos perdedores da Copa do Mundo de 2014 em Cuiabá: a saúde pública de Mato Grosso e o ensino das profissões de saúde.
Júlio S. Muller Neto é médico sanitarista e professor do ISC/UFMT
Confira a entrevista com Júlio Müller Neto na edição de junho da revista Radis (n° 106). “O SUS implica uma nova relação entre Estado e sociedade”, entre outros assuntos, aborda temas como a experiência dele como gestor de Saúde, desafios enfrentados na implementação do SUS e problemas atuais de gestão. Acesse: http://www4.ensp.fiocruz.br/radis/
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