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Enxugar a Constituição é um retrocesso

O artigo, escrito por José Antonio Moroni e Sônia Fleury, debate a opinião dos deputados Regis Fernandes de Oliveira e Sérgio Barradas Carneiro, autor e relator da PEC 341/09, defenderam a redução do texto constitucional, sob a alegação de que a esperança depositada nesse instrumento está sendo solapada pela ineficácia de suas normas.

Em artigo publicado no Blog do Cebes, os deputados Regis Fernandes de Oliveira e Sérgio Barradas Carneiro, autor e relator da PEC 341/09, defenderam a redução do texto constitucional, sob a alegação de que a esperança depositada nesse instrumento está sendo solapada pela ineficácia de suas normas (É preciso enxugar a Constituição, Tendências/Debates, 17/8). Sob os argumentos de que o Brasil vive um período de tranquilidade e liberdade, que as instituições funcionam regularmente e a economia flui sem sobressaltos, justificam a proposta dizendo que a Constituição respondeu a outro momento histórico, pós-ditadura, no qual havia necessidade de colocar direitos e políticas públicas no texto normativo como garantia do pacto social democrático.

 
A primeira falácia desse raciocínio é desconhecer que a situação atual de tranquilidade e liberdade é fruto exatamente da garantia dos direitos individuais e sociais garantidos no texto c onstitucional e da institucionalidade democrática ali desenhada. A situação atual é fruto da expansão da cidadania provocada pela inclusão universal no campo das políticas sociais, dos mecanismos de participação social que criaram nova arquitetura democrática, possibilitando o controle social da ação governamental. Desconhecer isso é desconhecer a essência da Constituição de 1988.
 
A segunda falácia é dizer que nenhum pacto, por mais importante que seja, é celebrado para durar eternamente. Ora, parece ser curta a memória dos nobres deputados ao esquecer as tentativas de sabotar o texto proposto pela Comissão de Sistematização da Constituinte, com a criação do Centrão. Desde aquele momento, as forças conservadoras, que sobrevivem até hoje, tentaram invalidar o pacto democrático que emergiu de um processo constituinte considerado o mais amplamente representativo da sociedade brasileira. Foi esse processo que assegurou um texto constitucional que expressa as contradições dessa sociedade complexa e desigual, mas que, pela primeira vez, não expressou apenas um projeto elitista de dominação.
 
A conhecida afirmação de que, com a Constituição de 1988, o Brasil seria ingovernável é a síntese dessa reação conservadora, que nunca se conformou com os avanços conquistados pela sociedade civil tanto na universalização das políticas sociais como no direito à participação política.
 
O fato de que a Constituição não tenha sido plenamente regulamentada só vem demonstrar o acerto dos constituintes que optaram por um texto mais abrangente. Questões fundamentais para o avanço do país e a consolidação democrática estão pendentes de legislação infraconstitucional. Por exemplo: a definição de normas de cooperação entre os entes federativos (artigo 23), a iniciativa popular (artigo 14), uma fonte regular de financiamento da saúde (disposições transitórias). Esses são alguns exemplos de como a reação conservadora tem impossibilitado a evolução do sistema político brasileiro, e não o contrário, que é a Constituição de 1988 que a impede. A argumentação de que o mundo evoluiu e, portanto, devemos adequar a Constituição à nova realidade é outra falácia, pois o texto constitucional continuou a ser atualizado por meio de emendas e ele não pode responder a conjunturas, mas a um projeto estrutural de Estado-nação. Foi exatamente por isso que o país pôde resistir melhor à onda do pensamento neoliberal e defender seu sistema de proteção social e combate à pobreza, que, hoje, ao lado dos bancos públicos, representa recursos excepcionais no enfrentamento à crise econômica, assegurando mercado interno, investimento e inclusão social.
 
Por fim, o argumento que atribui os problemas de governabilidade à existência do requisito de maiorias qualificadas para alteração do texto constitucional, propondo reduz ir o quórum à maioria simples, permitindo assim que o Poder Executivo forme maiorias com maior facilidade, é um atentado à democracia.
 
Essa proposta é profundamente reacionária e acaba com um dos contrapesos à avassaladora preponderância do Executivo sobre o Legislativo, que se expressa na exclusividade da iniciativa de legislação sobre determinadas matérias, por exemplo, no campo econômico. Propor a redução da maioria de dois terços para maioria simples, vinda do próprio Congresso, mostra até onde chegou a capacidade de autodestruição e aviltamento de um Poder republicano. Mas a intenção é clara: os avanços sociais conseguidos em 1988 seriam facilmente derrubados.
 
José Antonio Moroni é diretor da Abong (Associação Brasileira de ONGs) e do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).
 
*Sonia Fleury é professora titular da Fundação Getulio Vargas e presidente do Cebes
Sônia não é mais presidente do Cebes, agora presidido por Roberto Passos. O texto foi enviado ao Jornal Folha de São Paulo antes da eleição da nova diretoria, ocorrida no 1º Simpósio de Políticas e Saúde, em agosto, no Rio de Janeiro.

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