A presidente do V Congresso de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, Leny Trad, falou ao BoletIN sobre alguns temas debatidos no evento e a importância de uma avaliação mais rigorosa do encontro. A professora e pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia destaca, ainda, o GT Integralidade em Saúde, que levou ao congresso o acúmulo de 10 anos de reflexões e pesquisas em uma abordagem “absolutamente interdisciplinar”.
O lugar que as Ciências Sociais ocupa no campo da Saúde Coletiva foi um tema exposto e debatido sobre vários aspectos durante o congresso. E como tem se dado a abordagem das questões de saúde coletiva no campo das Ciências Sociais?
Uma das palavras de ordem do nosso congresso é integração e articulação e uma recusa a posições sectárias e corporativas. Em vários debates promovidos em torno dessa questão – o lugar das Ciências Sociais no campo da Saúde Coletiva e os desafios metodológicos e teóricos – surgiam sempre essa dupla perspectiva ou direcionalidade: daqueles são das Ciências Sociais e atuam no campo da Saúde Coletiva e daqueles que vêm da Saúde e abrigam ou buscam referenciais das Ciências Sociais e os lugares de pertença de cada um de nós. O que foi muito ressaltado, até em uma nota, é que em realidade devemos respeitar e valorizar nossas identidades, inclusive de pertença. Ou seja, alguns de nós atua em institutos, em espaços e programas da Saúde Coletiva, outros, talvez em menor proporção, atuam em programas de História, Antropologia, Sociologia mas elegem a Saúde e/ou a Saúde Coletiva como objeto. Esse diálogo ainda é tenso, não é tranquilo, mas o Congresso apontou na direção da articulação, da integração e do reconhecimento do valor da diversidade. A nossa riqueza reside justamente nessa peculiaridade. Do lado das Ciências Sociais há sempre uma expectativa de que essa incorporação dos referenciais na Saúde Coletiva se dê de um modo mais adensado, há uma crítica sobre a superficialidade. Mas eu acho que há também uma certa dificuldade de entender o caráter eminentemente aplicado desse campo, que demanda leituras e adequações que são próprias de um campo aplicado. Do lado da Saúde Coletiva, de alguns setores, também há dificuldades e resistências em reconhecer que esse olhar que, por exemplo, se produz na Antropologia da Saúde ou na Sociologia da Saúde, na perspectiva filosófica, do direito, vai trazer especificidades e perspectivas que podem ser mais abstratas e que vão exigir uma maior esforço de apropriação. Enfim, acho que temos uma disposição de ambas as partes, mas temos um caminho a percorrer.
Esse diálogo ainda é tenso, não é tranquilo, mas o Congresso apontou na direção da articulação, da integração e do reconhecimento do valor da diversidade.
Quais os principais desafios na formação de pesquisadores na Saúde Coletiva?
Eu diria que o Congresso apontou primeiro um certo diagnóstico, com grande convergência de opiniões. Porque nós temos hoje contextos diversos do ensino das Ciências Sociais na Saúde Coletiva. Com a criação da graduação em Saúde Coletiva tem aí uma frente de trabalho que se inicia. Esse novo curso e o modo como as disciplinas se colocam é muito promissor, principalmente porque é um caminho no seu nascedouro. São cursos que estão se formando agora. Outro contexto é o ensino de Ciências Sociais nos cursos de Saúde. Esse contexto é bem mais árido, porque via de regra são cursos com uma predominância considerável da abordagem clínica/biomédica e com uma tendência a uma concepção mais instrumental. Essa inserção nos cursos de Saúde encontra uma resistência pelas próprias características dos cursos. Na pós graduação, a questão é um pouco mais complexa, porque há dois contextos do ponto de vista de identidade. Você tem um conjunto de programas de pós-graduação na área de Saúde Coletiva que tem áreas específicas de concentração em Ciências Sociais ou eixos/ linhas de pesquisa nessa área e os outros que têm disciplinas de maneira mais esparsa é mais frágil. Eu diria que naqueles que têm uma área mais consolidada de Ciências Sociais e Saúde, as possibilidades de investimento mais sistemático são maiores. No caso da graduação em Saúde Coletiva eu acho que vem existindo um caminho muito promissor, porque tem diferentes cientistas sociais que já estão à frente dessas empreitadas, compondo os grupos que estão desenvolvendo esses cursos. Nas graduações em Saúde eu diria que a gente tem que ter também uma ressalva, ou seja, muitos desses alunos de Saúde, estudantes nessa fase de graduação, deveriam ter uma preocupação com a finalidade da inclusão dessas disciplinas no currículo. Não pode ser algo apenas para constar. Tem que ter de fato uma escolha, um opção. Em sendo uma opção, que ela seja levada a cabo com toda seriedade possível. Mas a abrangência disso vai ser sempre menor, porque a pretensão não é formar um cientista social no curso de Medicina ou de Enfermagem ou de Nutrição. É preciso também a gente reconhecer as especificidades dessa inclusão dos conteúdos e das disciplinas em cada caso. Isso nos preocupa – e nos nossos debates a gente sempre tem colocado. Não é possível se apropriar do referencial teórico metodológico das Ciências Sociais sem se comprometer com uma formação adequada para isso. Para a pós-graduação isso se coloca com muita clareza. Vários estudantes, depois já profissionais, pesquisadores, de áreas diversas da Saúde se encantam com os referenciais e as abordagens das Ciências Sociais. Mas não é suficiente o encantamento. Uma vez que há uma decisão por trabalhar com esses referenciais é preciso investir na formação. E aí o que foi destacado é a importância dos grupos de pesquisa, dos núcleos, dos laboratórios, dos programas, de investir numa formação contínua, sistemática e permanente, uma vez que pretendam usar esse referencial.
Não existe outra maneira de você qualificar e refinar a adoção dessas perspectivas senão pela formação continuada. Ao mesmo tempo, há uma discussão política em torno da realidade social, que as Ciências Sociais pode e deve contribuir. Portanto, o refinamento dessa formação não estaria apenas dirigida apenas à finalidade da pesquisa, ou à formação de pesquisadores, mas concretamente com a formação de sujeitos sociais e críticos. Independente de qual seja a natureza do curso, se ele resolve apostar na inclusão das disciplinas de Ciências Sociais e Humanas, é necessário que isso seja feito de modo consistente.
A comissão organizadora já dispõe de avaliações sobre o perfil do Congresso, participantes, áreas com mais interesse, quantidade de trabalhos?
A gente investiu nesse congresso em um processo mais esquemático e rigoroso de avaliação. Nós contruímos dois instrumentos: um de avaliação dos GTs, com a modalidade inaugurada neste congresso (pôster eletrônico), e um instrumento para avaliação geral que já foi disponibilizado na página do Congresso, para ser respondido por todos os participantes. A resposta está muito boa, os coordenadores se sensibilizaram com a importância dessa avaliação. Não temos ainda o resultado da avaliação, mas acho que avançamos no sentido de uma avaliação mais rigorosa, uma vez que a gente construiu um instrumento sobre o conjunto dos participantes, avaliando questões sobre a pertinência do tema, qualidade das sessões e outros aspectos gerais. E, também, uma avaliação sistemática da modalidade GT, que foi o eixo central da programação científica. Tanto as sessões orais como os pôsteres eletrônicos, que foram comunicações breves, estão sendo avaliadas por este instrumento. As impressões, baseadas nas reuniões feitas durante o evento, foram muito positivas e elogiosas quanto à programação científica, quanto aos eixos do congresso, particularmente um reconhecimento de que o congresso trouxe uma temática estratégica – que é o lugar das Ciências Sociais na Saúde Coletiva – e que conseguiu contemplar um leque muito atual e contemporâneo de questões. A segunda observação foi em relação à densidade do debate, que vinha sendo um questionamento, que muitos congressos estavam se tornando espaços muito superficiais de debates. Essas são impressões que a gente ouviu de muitas pessoas sobre a programação, embora tivemos também muitas queixas sobre a logística.
Por causa da distância entre os dois locais do evento?
A logística apresentou dois problemas: um tem a ver com o próprio locus, a cidade de São Paulo, que comporta uma complexidade considerável com relação à deslocamentos, que são difíceis e há um tráfego muito intenso. E a gente apostou num congresso universitário, o que é uma aposta positiva, mas tivemos algumas dificuldades no gerenciamento desse espaço. O campus é muito bom, mas é muito grande. Nós tivemos disponibilidade de duas principais unidades que não eram muito próximas. Muita gente perguntou porque não colocaram unidades mais próximas, mas é um resultado de uma negociação. As unidades que acolheram foram aquelas duas. As instalações, em si, eram muito boas, principalmente as da parte da tarde, as salas excelentes, equipadas. A dificuldade maior, de fato, foi o deslocamento.
E como a Sra. percebe o interesse pela Integralidade em Saúde no Congresso?
Eu diria que a Integralidade ocupou um destaque, ao lado de outros temas, e que esse congresso, assim como a própria trajetória de produção que se tem sobre o tema, vem permitindo superar uma visão talvez inicialmente muito esquemática da Integralidade. Eu acho que o próprio Lappis tem sido fundamental em complexificar – no bom sentido da palavra – o termo e oferecer uma abordagem absolutamente interdisciplinar em torno da Integralidade. Eu não só me refiro nesse momento ao Congresso, mas me refiro aos eventos, os vários seminários produzidos pelo Lappis. Mas eu diria que o Congresso, a meu ver, sobre esse tema, refletiu toda uma acumulação de 10 anos. Você pode olhar a mesa e o GT e vai encontrar uma formação dos expositores e dos próprios objetos de discussão que é efetivamente interdisciplinar. Se por um lado a interdisciplinaridade aparece como elemento-chave, os preceitos estão em torno das nuances, dos objetos, das questões em torno da Integralidade. Eu acho que elas hoje extrapolam a dimensão dos serviços. Num primeiro momento o conceito chega muito vinculado aos serviços, mas posteriormente ela vai agregando um debate que alia sujeitos, contextos, dimensões mais amplas das relações pois não se trata só de você pensar num conjunto de necessidades de saúde as quais tanto profissionais como usuários estariam envolvidos, mas as próprias dimensões do cuidado que estão aí presentes.
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