Entrevista: Ana Heckert comenta violência contra população em situação de rua em Vitória
No dia 10 de junho, o Movimento Nacional de População em Situação de Rua do Espírito Santo, juntamente com outras entidades de direitos humanos, divulgou nota pública em repúdio a ações de violência contra dois moradores de rua ocorridas no início do mês, em Vitória. Na ocasião, Magno Francisco Bretas e Devanil Monteiro foram agredidos por Guardas Municipais durante uma abordagem no Centro da capital capixaba. O Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH), instituído pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, também divulgou nota sobre esta situação, solicitando providências ao poder público do Espírito Santo e garantia à integralidade de direitos para a população em situação de rua. Para comentar este recente caso de violação de direitos humanos, o BoletIN entrevistou Ana Heckert, pesquisadora e professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e uma das coordenadoras do Projeto de Extensão Andarilhos: construindo outros caminhos na cidade, que compartilhou ações em andamento na UFES a partir deste projeto e analisou esta situação.
BoletIN – Que ações vocês realizam na UFES relacionadas à população em situação de rua?
Ana Heckert – Há três anos, o Movimento Nacional de População de Rua organizou uma comissão no Espírito Santo e, há dois anos aproximadamente, foi construído um projeto de extensão na Universidade Federal do Espírito Santo, dentro do Departamento de Psicologia, voltado para a população em situação de rua. Esse projeto de extensão, chamado Andarilhos: construindo outros caminhos na cidade, foi proposto por alunos, e é co-coordenado por uma então mestranda, a Gilderlândia Kunz (Gil), que trabalhava com população de rua e entrou no Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da UFES, com pesquisa sobre os modos de vida da população de rua e eu a orientei. Particularmente, nunca tinha trabalhado com população de rua e um grupo de alunos procurou a mim e a Gil, de forma que ela assumiu a coordenação técnica e eu a institucional.
O projeto Andarilhos tem algumas frentes de ação: apoio ao Movimento Nacional de População de Rua, entendendo que apoiar é problematizar e fortalecer as lutas vinculadas aos direitos humanos; apoio ao Tá na rua, um boletim informativo do movimento nacional de população de rua, seção Espírito Santo; e, por fim, começamos a ir aos equipamentos, tentando mapear que rede é essa de políticas públicas que a população de rua acessa ou tenta acessar. Neste processo de acompanhar o movimento, nos deparamos com violação o tempo todo. Sempre tem ações de violação de uma parte da população e acompanhamos, especificamente, o contexto de Vitória. Uma parte da população solicita constantemente a retirada dos moradores de rua das ruas. Em alguns momentos, essa retirada é feita de forma violenta, entrando a equipe de limpeza da prefeitura e jogando um jato d’água.
BoletIN – Há em Vitória algo como a Operação Choque de Ordem, realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro e que, entre suas ações, recolhe moradores de rua?
Ana Heckert –Ninguém assume isso, mas, na verdade, o que vemos, cada vez mais – apesar da tentativa de conversa com os gestores municipais e estaduais, e apesar dos gestores municipais e estaduais negarem que eles estão protagonizando esse tipo de política –, são agentes de Estado efetuando ações de forma violenta, retirando a população de rua de forma violenta.
A última ação que ocorreu foi no dia 5 de junho, contra dois populares de rua e vários movimentos do Espírito de Rua estão se pronunciando. O que defendemos é que a população de rua tenha o direito à cidade, o direito também ao acesso a políticas públicas. Apesar de todas as políticas já pactuadas, de serem cidadãos como nós que não moramos nas ruas, não é isso que está ocorrendo. Não conheço a situação aqui do Rio de Janeiro, mas os próprios moradores de rua têm comunicação com outros estados e sabem que a situação do Rio de Janeiro é muito delicada. Acho que estamos vivendo, em função dos grandes eventos que vão acontecer nos próximos três anos no país, um processo de higienização dos espaços públicos. E o primeiro alvo é a população de rua.
Um outro problema que vem acontecendo, em alguns lugares de forma mais assumida e em outros de forma mais sutil, é a questão da internação compulsória, porque vincula-se muito a população de rua ao uso de crack e várias pesquisas têm mostrado que não é essa a realidade. A maioria da população de rua não é usuária de crack. Inclusive está sendo feita uma pesquisa sobre população de rua por um grupo da Escola de Admardo, uma escola municipal de Jovens e Adultos em Vitória, em que moradores de rua também participam como pesquisadores. O que essa pesquisa, que ainda está em andamento, publicou como dado parcial é que o maior consumo é de álcool e não de crack.
BoletIN – Essa ação de violação denunciada na nota pública tinha qual propósito por parte dos agentes de Estado?
Ana Heckert – As justificativas, por mais que elas existam, não são plausíveis. Antes, o que estava sendo colocado, desde janeiro, em Vitória, é que a população de rua tinha direito de ir e vir, mas não de permanecer. Agora, o que se diz é que a população de rua tem direito de ir e vir, permanecer, mas não de morar na rua. Eu não sei qual é a diferença entre permanecer e morar. Não há justificativa plausível. Neste caso, não houve resistência, os moradores de rua não estavam armados, por exemplo, não se pode alegar um confronto físico, nada disso. Na verdade, o que queremos ressaltar são essas práticas de violência que só acontecem porque, de algum modo, o poder público está admitindo essa possibilidade. Isso acontece porque não é apurado, porque não há uma fala explícita assumindo que esse tipo de prática não pode ser admitida.
BoletIN – Houve alguma mobilização popular em reação a este episódio recente?
Ana Heckert – Ainda não, mas o movimento está analisando e avaliando se vai às ruas para uma manifestação. Fizemos há alguns meses uma vigília na Praça Costa Ferreira, em Vitória, depois de algumas situações que tinham acontecido. Contamos com apoio de várias entidades e movimentos. O movimento se reúne toda semana e alguns integrantes do projeto Andarilhos que participaram da reunião informaram que, além das medidas de procurar apoio de direitos humanos e proteção, estava sendo avaliado se iria acontecer uma mobilização ou não. O movimento também acionou as representações de direitos humanos do Estado.
Leia mais:
>> Nota pública do Movimento Nacional de População em Situação de Rua do Espírito Santo
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