A professora e coordenadora do Lappis Roseni Pinheiro (IMS – UERJ), em ensaio-opinião elaborado especialmente para o portal CEBES, discorreu sobre o debate em torno do tema Direito à Saúde: direito de todos e dever laico do Estado brasileiro. Leia na íntegra:
“ Inspirada na clássica frase de Hannah Arendt, “A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos”, buscarei contribuir para esse debate com minha opinião sobre um tema que me é tão caro. Alerto que tenho a opinião, também no sentido arendtiano, de que não se trata de defender um entendimento único, autoevidente, característica típica da ideia de verdade, mas da possibilidade de compor um entendimento, um acordo, sem a obrigatoriedade da unidade de pensamento. Enfim, exercer a possibilidade de deliberar e realizar algo, apesar de manter as divergências. Daí apresento minha posição coerente, afirmando o dever laico do Estado brasileiro de assegurar o direito à saúde como direito de todos, cuja expressão concreta e cotidiana se presentifica no direito de ser e não somente de ter saúde, ou melhor, dizendo direito de ser no SUS e com o SUS.
Afirmo isto porque entendo que o Sistema Único de Saúde segue sendo justamente esse signo do homem vitruviano (homem como condição de unicidade das humanidades), que, em permanente movimento, enseja cumprir a tarefa hercúlea de ser a medida de todas as respostas às demandas e necessidades de saúde. E defendo isso mesmo!!! Desde que não percamos de vista que o valor dos valores dessa tarefa tem no cuidado seu principal amálgama; ou seja, o cuidado como uma necessidade radical, entendida como uma necessidade não alienante, muitas vezes com feições de demandas espontâneas, programadas ou referenciadas ou mais que o valha, como algo assustadoramente imprevisível, incontrolável, não metrificável.
Talvez aqui resida a principal pedra de toque do fenômeno da judicialização da saúde, assustando gestores, governantes, profissionais, sobretudo quando as demandas se apresentam como pleito judicial, restando ao Executivo fazer cumprir a lei. Dessa forma, os princípios infraconstitucionais do SUS, como universalidade, integralidade e participação, são tão convocados a lograr o argumento normativo-legal do direito à saúde como direito humano. Mais do que isso: o direito à saúde como direito à humanidade no território onde os sujeitos residem, atuam, vivem e sofrem nas suas experiências de adoecimento e de busca por cuidados.
Apoiada no pensamento de Agnes Heller (Heller, 1978), proponho fazer o exercício teórico-prático de adotar a ideia de cuidado à luz da definição de “necessidades radicais” dessa autora, apreendida como uma resposta à diversidade, o único, o idiossincrático da pessoa singular, mas também das comunidades. Ou seja, uma transmutação da pluralidade que se expressa nas diferentes especificidades individuais ou coletivas tão presentes nas demandas por cuidado em saúde. Logo, faço uma provocação para que assumamos a ideia de cuidado na sua radicalidade humana como demanda-necessidade que não pode ser satisfeita quantitativamente com uma oferta desumanizada, tampouco não podem ser reconhecidas em um mundo de subordinação ou superordenação.
Até porque os saberes e práticas que operam requerem um horizonte ético- político-epistemológico capaz de considerar a vida concreta das pessoas, ou seja, o cotidiano como solo de construção e reconstrução de pensamento-prático, crítico e reflexivo acerca do que lutamos por cuidado na saúde. Penso que o SUS concreto e real nos exige essa compreensão alargada. Mas o que isso tem a ver com o dever laico do Estado?
Considerando o espaço que tenho neste ensaio-opinião, elejo os direitos sexuais e reprodutivos como um típico “caso” de direito ao cuidado radical, ou seja, uma necessidade radical legítima e libertária para lograrmos a efetivação do direito à saúde como um direito humano daqueles que demandam por atendimentos vinculados à sexualidade ou aos direitos reprodutivos.
Não é de hoje que presenciamos intensas discussões acerca dos desafios de se garantir os direitos sexuais e reprodutivos, por meio de políticas públicas, as quais vêm sendo insistentemente atacadas por representantes religiosos, que exigem protagonismo social nos temas relacionados com a sexualidade, impondo um “lugar de subordinação” das liberdades individuais e autonomia das pessoas, condenando valores próprios de Sociedade e de Estado modernos a suas liturgias monoteístas e patriarcais. E mais: podemos observar essas investidas sendo visibilizadas de maneira preconceituosas nas redes sociais e diferentes mídias, até mesmo em diferentes instâncias políticas, com a presença de algumas instituições religiosas, cujos representantes interveem contra a elaboração de políticas públicas ou projetos de lei que favoreçam esses direitos.
Também não é incomum observarmos o apelo argumentativo com base em princípios religiosos de ordem moral, incitando a discriminação e o preconceito de uma pessoa por causa de sua orientação sexual ou quando sempre tentando exercer o controle sobre as práticas sexuais das mulheres, numa flagrante situação de desrespeito aos direitos de cidadania. Por isso, a defesa incontornável do Estado laico, como frente de justiça e equidade social contra as investidas de diferentes religiões que insistem em seguir impondo um controle patriarcal rígido sobre as mulheres, especialmente sobre os valores que têm propiciado a dignidade de suas condições de viver, como o princípio da igualdade, a autonomia e o direito de poder decidir sobre sua própria sexualidade e sua fertilidade.
Tenho a convicção que é exatamente no espaço cotidiano que os conflitos relacionados à sexualidade e reprodução são vivenciados, impregnados de elementos religiosos, cujos efeitos e repercussões na vida cotidiana (e por que não, no cotidiano do SUS?) se concretizam pelo modo de pensar e agir dos sujeitos implicados nessa relação. Isso significa reconhecer que famílias, vizinhos, os profissionais de saúde e da justiça compartilham esse imaginário social nutridos desses elementos e que, em muitas ocasiões, os programas de saúde específicos se vêm afetados, precisamente, pela dualidade ideológica que vivem alguns funcionários dos serviços de saúde, em particular de hospitais – por exemplo, que se consideram com o direito de julgar, em nome de sua moral religiosa, qualquer pessoa que busca serviços para a realização de um aborto; ou que é portadora de qualquer tipo de enfermidade sexualmente transmissível.
Parece-me evidente que é exatamente neste momento que não podemos nos esquivar de pensar nas mediações impostas por ideologias religiosas, na tentativa de cercear o direito individual e o direito de cidadania de pessoas que solicitam serviços vinculados à sexualidade ou aos direitos reprodutivos. Sobre esse aspecto, destaco um debate primoroso documentado pela Revista Radis n. 89, em 2010, sobre o “Aborto no Estado Laico”, que traz elementos cruciais para aprofundarmos a discussão sobre o direito à saúde como direito humano ao cuidado. Ali são ressaltadas afirmações célebres, tais como da pesquisadora Debora Diniz, quando critica o falso pressuposto de que a religião católica (representada pelo crucifixo e/ou Cristo Redentor no Rio de Janeiro) é anterior à própria democracia e que “a religião, ao contrário, deve se submeter ao pacto democrático”, pois quando isso não acontece, os reflexos se manifestam na vida social — por exemplo, “no SUS, onde a laicidade é um frágil dispositivo”. Por sua vez, identificamos nas afirmações de Ana Maria Costa, coordenadora da pesquisa, a profunda preocupação com o retrocesso do direito ao aborto na América Latina, com vários parlamentos votando legislação mais restritiva.
A luta das mulheres por cidadania no cotidiano de suas vidas em sociedade se afirma justamente na reivindicação pelo cumprimento do dever laico do Estado, no sentido de reconhecermos a pluralidade das demandas por cuidado, ou melhor, nas necessidades radicais fortemente representadas, aqui neste caso, nos movimentos feminista e GLBTT. O dever laico é afirmar a demanda-necessidade de um cuidado radical desses segmentos, que consistem em se verem livres de interferências e imposições das religiões que insistem em se apossar “privativamente” de seus corpos. Afinal, não são os corpos o lugar onde se concretizam os discursos, as ideologias e os dogmas?
Daí se revela nossa preocupação com o dever laico do Estado, pois deslinda o quanto a tarefa de ter direitos a ter direitos ganha notoriedade em Estado de Direito com impactos não somente financeiros, mas ético-políticos em sistemas universais de saúde como o nosso SUS. Em nossos estudos no LAPPIS, temos observado que quando as políticas públicas são operacionalizadas utilizando dispositivos de gestão fundados na democratização institucional, como, por exemplo, o método do apoio institucional, torna-se possível construir políticas com potencial máximo de transversalidade, de modo a ampliar a capacidade governamental de produzir respostas às demandas- necessidades por cuidado reivindicadas pelas mulheres em sua luta por reconhecimento, levando em consideração as suas especificidades de raça, sexo, gênero e etnia.
Recorro ao texto da teóloga Yury Puello Orozco, doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP e integrante da Organização “Católicas pelo Direito de Decidir”, que cita a filósofa Agnes Heller, quando esta afirma que “somente quem tem necessidades radicais pode querer e fazer as transformações da vida. Essas necessidades ganham sentido na falta de sentido da vida cotidiana. Só pode desejar o impossível aquele para quem a vida cotidiana se tornou insuportável, justamente porque essa vida já não pode ser manipulada”.
Longe de encerrar por definitivo esta discussão, desejo apenas reafirmar a defesa e a luta pelo SUS como um homem vitruviano, que no espaço público ao mesmo tempo circular e quadrilátero, não move seu umbigo de posição, que no nosso caso, é o umbigo universal onde está o dever ético-político de laicidade. E é para esse umbigo que devemos olhar, e não o de cada um individualmente, porque o direito à saúde como direito de todos e dever laico do Estado se presentifica e se visibiliza no cotidiano das pessoas “em relação”. Trata-se de vivenciar o direito à saúde como um princípio educativo da experiência humana de transformação das normas, regras, interdições, dogmas, repressões e violações, ou seja, transmutar a natureza dessas ações que produzem algo irreparável e insuportável, para aquelas ações que se responsabilizam pela produção do bem comum. Logo, não podemos aceitar que o Estado se curve às instituições políticas que o compõem, as quais consideram as religiões como elemento de legitimação e de integração social.
Como intelectual orgânica, acadêmica e militante do SUS, do direito e da Reforma Sanitária brasileira, encerro este ensaio-opinião destacando a importância da formação em saúde e a responsabilidade das instituições ensino, de pesquisa e serviços, em promover a reconciliação das ações de ensino e extensão e/ou cooperação. Afirmo isso, pois devemos nos dedicar a pensar nas gerações futuras, e nada como a memória, o cotidiano e interdisciplinaridade como práticas metodológicas para fundamentar a defesa da saúde, do SUS, como direito de todos e dever laico do Estado.”
Referências:
Braz, N. Necessidades humano-sociais: ensaio sobre a atualização das necessidades
radicais. Argumentum, Vitória (ES), v. 5, n.2, p.123-138, jul./dez. 2013.
Heller, A. Teoría de las necesidades en Marx. Trad. J. F. Yvars. Barcelona: Península,
1978.
Mafra, J. F. O cotidiano e as necessidades da vida individual: uma aproximação da antropologia de Agnes Heller. Educação & Linguagem • v. 13 • n. 21 • 226-244, jan.- jun. 2010.
Orozco, Y. P. Em defesa do Estado Laico. Seu artigo, originalmente em espanhol, foi captado, em 07/07/2008, no endereço www.catolicasonline.org.br
Radis: No 89 • Janeiro de 2010 – aborto no estado Laico http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/radis_89.pdfRevista
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