O Prêmio “Vale-Capes de Ciência e Sustentabilidade” vem gerando polêmica e provocando a reação da comunidade científica. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR) enviou uma carta ao presidente da CAPES, Jorge Almeida Guimarães, denunciando a criação do Prêmio que deveria financiar pesquisas acadêmicas por considerar indecente a parceria entre uma empresa como a Vale S.A., que compromete as relações com o meio ambiente, e a CAPES. O Lappis parabeniza a ANPUR pela iniciativa. O documento é assinado também pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Leia a íntegra da carta.
“Prezado Sr. Jorge Guimarães
Nós, representantes de associações acadêmicas, professores e pesquisadores abaixo-assinados, viemos a público declarar que consideramos inadequada a instituição do chamado “Prêmio Vale-Capes de Ciência e Sustentabilidade”, visando a premiar Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado associadas a temas ambientais e socioambientais. É de conhecimento público que as práticas da Vale S.A. são, com grande frequência, avaliadas como impróprias do ponto de vista social e ambiental, em muitos casos com implicações legais, conforme registrado por inúmeros trabalhos de pesquisa nas áreas de Sociologia, Antropologia e Ciências Sociais Aplicadas expressos em apresentações em Congressos, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado referendadas pela comunidade científica brasileira nos últimos anos. Com base nesta produção científica, listamos abaixo alguns exemplos de danos ambientais e sociais associados à atuação da empresa em questão e, em anexo, apresentamos uma amostra ilustrativa de citações de resultados de pesquisas recentes:
Despejo ilegal de minério diretamente nas águas da Baía de Sepetiba (Zborowski, 2008 e Stotz; Peres, 2009);
Dragagem de 20 milhões m3 de lama contaminada por cádmio, zinco e arsênio na Baía de Sepetiba (FIOCRUZ, 2011);
Emissão de material particulado no ar contendo elementos químicos causadores de problemas respiratórios graves (FIOCRUZ, 2011);
Rompimento de mineroduto e contaminação do solo e de corpos hídricos no município de Paragominas, PA. (Marin, 2010);
Destruição de terras agricultáveis e desmatamento de castanheiras para a construção de minerodutos, linhas férreas e linhas de transmissão de energia em territórios ocupados por populações tradicionais (Marin, 2010; Pereira, 2008);
Não-cumprimento do acordo com comunidades quilombolas do Jambuaçu, Moju, PA, pelo qual a Vale deveria recuperar 33 km de estrada que cortam as terras quilombolas, a reforma de duas pontes e indenizações pela passagem do mineroduto de bauxita e da linha de transmissão (Pereira, 2008, apud Trindade, 2011);
Conflitos com comunidades indígenas Xikrin (na região de Carajás, PA) e com os índios Krenak, na região de Resplendor, MG. (Carrara, 2009);
Deslocamento compulsório de populações em função da exploração mineral e da construção de barragens e usinas para fins de auto-geração de energia (Pinto, 2005; Lages, 2008; Wanderley, 2009, Campos, 2010);
Transformação da imagem da empresa frente à opinião pública, sem que suas ações sejam menos degradantes no que respeita ao meio socioambiental (Cabral e Paraíso, ANPOCS, 2005);
Projeto de mineração da Serra da Gandarela, considerada Área de importância biológica especial, com endemismo de espécies e alta biodiversidade. (Marent; Lamounier; Gontijo, 2011);
Marcação de casas que estariam em área de remoção para a implantação de uma siderúrgica no Maranhão, sem que as famílias atingidas fossem informadas sobre para onde, por quem e em que condições seriam removidas (Santos Jr. et alii 2009);
Construção de estradas e infra-estruturas que têm provocado assoreamento e morte de igarapés no território quilombola do Jambuaçu, Moju, PA. (Trindade, 2011).
Consideramos, em conseqüência, que o estabelecimento de um vínculo desta ordem entre a Capes e a Vale S.A. tende a enfraquecer a autonomia científica no estudo das relações entre meio ambiente e sociedade no Brasil, na medida em que as práticas da referida empresa são, elas próprias, objeto de pesquisa e que a situação assim criada pode comprometer a análise dos casos concretos em que esta firma figure como agente social em conflito com atores públicos (prefeituras, IBAMA e Ministério Público, entre outros), assim como com populações afetadas por empreendimentos, com organizações sociais defensoras do meio ambiente, direitos humanos e direitos sociais. Isto posto, afirmamos nossa preocupação com o fato de que a produção científica na área temática em questão venha a perder em substância e qualidade com a transformação de um de seus próprios objetos de estudo em co-patrocinador de pesquisas – mesmo que de modo indireto, como é o caso da concessão de Prêmios.
Entendemos, a este propósito, que empresas cuja atuação seja, com frequência, questionada como danosa a populações e ao meio ambiente, quando eventualmente dispostas a destinar recursos ao financiamento de pesquisas acadêmicas, devem submeter-se a condições definidas na estrita perspectiva do caráter público da produção científica. Propomos, por conseguinte, que a aplicação de recursos privados a premiações de pesquisas científicas passe por uma instância pública que regule a distribuição dos recursos e que critérios e dispositivos normativos sejam instituídos para lidar com casos como esses, excluindo-se, em particular, que representantes de empresas venham a compor júris na avaliação de trabalhos científicos – como é o caso neste prêmio – e que recursos devidos sob a forma de multa, condicionantes ou compensação sejam apresentados pelas empresas como patrocínio ou filantropia estratégica.
Atenciosamente,
Profa. Ester Limonad
Presidente da ANPUR”
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