Confira perguntas lançadas à comunidade e participe
Em tempos de manifestações nas ruas e reivindicações populares por direitos, o Cebes estimula o debate sobre o acesso ao direito à saúde, a fim de avançar pela consolidação do SUS. O Lappis reproduz a discussão iniciada no blog do CEBES. Confira perguntas lançadas à comunidade do campo da saúde e participe do debate.
Publicado originalmente no blog do CEBES
A falta do cumprimento das disposições constitucionais que prevêem o direito à saúde universal de qualidade e gratuito está no sentimento da população que, no dia a dia, se depara com a realidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e que hoje está nas ruas do país.
O Cebes tem consciência de que somente com mobilização da sociedade ocorrerão mudanças nesse cenário. Pois bem, a hora chegou! A população brasileira está nas ruas há duas semanas e incluiu a saúde em sua pauta. Entendemos que o momento político é impar para a ampliação da cidadania e dos direitos sociais.
Nesse sentido, buscando mais uma vez contribuir para a democracia e para o debate que visa avançar pela consolidação do SUS e eliminar as intoleráveis desigualdades e iniquidades em saúde, o Cebes lança algumas perguntas à comunidade do campo da saúde, particularmente a formadores de opinião e outros atores que serão instados a adotar posições mediante o clamor das ruas.
A ideia é apontar caminhos para avançar rumo ao direito universal à saúde, pública e de qualidade. Vamos lá, opine você também e, mais do que isso: vamos buscar novas parcerias pelo debate nas plenárias dos movimentos sociais para que as propostas demandadas pelo povo possam retomar o ideário da reforma sanitária!
—
Cebes: Vemos que a saúde está nos cartazes, nas vozes e demandas do movimento popular que enche as ruas das principais cidades brasileiras. Por que a saúde está na pauta popular?
José Temporão (Diretor Executivo do Isags, ex-presidente do Cebes e ex-ministro da saúde): No caso do SUS, basicamente porque o cotidiano de contato do povo com a rede assistencial é de baixa qualidade e não alcança a todos de acordo com suas necessidades e expectativas de conforto, qualidade e humanização.
Roberto Passos (ex-presidente do Cebes, pesquisador do IPEA – DF e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília): O movimento popular se encontra numa fase inicial, de pedagogia política, aprendendo coletivamente a como fazer propostas que mobilizem e contestem. Naturalmente, está buscando tornar mais claras e precisas suas reivindicações em várias áreas, embora em algumas (como em transporte público) já conte com análises e propostas bem claras. A saúde aparece como uma das prioridades, pensada em termos de necessidade de mais investimentos, o que é um ponto amplamente reconhecido por especialistas e militantes do movimento sanitário. E por que entra saúde? Porque as deficiências da assistência à saúde no SUS são evidentes para todos. Em Brasília, por exemplo, é calamitosa a situação. Por quê? Devido a um histórico descalabro administrativo eà corrupção. Acho que os jovens sabem disto, embora não tenham um diagnóstico e uma pauta de reformas. Sabem também que a velha desculpa de falta de médicos não convence ninguém.
Laura Tavares Soares (Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
A saúde é a área mais sensível nas demandas populares. Além disso, existe uma insatisfação pela forma como o setor saúde vem funcionando. No entanto, acho que essa insatisfação não é dirigida especificamente ao SUS nas atuais manifestações. Boa parte dos manifestantes, de classe média, devem depender de planos de saúde que vem apresentando (ou sempre apresentou, mas só agora se evidencia com mais força) um atendimento totalmente insatisfatório, apesar dos subsídios públicos, com uma renúncia fiscal significativa.
Maria do Socorro (Presidenta do Conselho Nacional de Saúde): Porque o SUS, apesar de 25 anos de sua implementação, do jeito que está organizado e funcionando, não responde às necessidades de saúde da população. Seu resultado, junto ao povo do campo e da cidade, é menor que o esperado. Também porque a saúde é uma das faces da questão social brasileira ainda não equacionada, demarcada fortemente pelas desigualdades e injustiças sociais histórica e socialmente construídas. A saúde – juntamente com outras necessidades sociais básicas, como a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Educação, a Segurança Pública, o Saneamento Básico -, integra o direito à vida, os direitos humanos, a utopia de uma vida digna. Todavia, à medida que essas necessidades sociais não foram suficientemente atendidas, o povo foi às ruas protestar. Vale ainda ressaltar que em muitos lugares desse imenso país a saúde funciona como moeda de troca e não é concebida pelos governantes e governados como direito da população e dever do Estado. A crítica, contudo, não significa desconsiderar os importantes avanços obtidos nesses 25 anos de SUS, como os marcos constitucionais, a descentralização, ampliação da cobertura na atenção primária, a imunização universal, a ampliação das vigilâncias e a institucionalização do controle social e da gestão participativa. Muitos históricos problemas continuam sem resposta de consecutivos governos, entre estes, financiamento e planos de carreira e salários para os trabalhadores do SUS. Espero que os governantes entendam a mensagem das ruas e se comprometam com um projeto do SUS Público, Integral e Universal. Um SUS como política potencializadora do desenvolvimento social e econômico que o país necessita.
Clair Castilhos (Secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos): Porque a saúde “é um direito de todos e não o privilégio de alguns”! Esta é uma conhecida afirmação muito difundida nas lutas pelo direito à saúde no Brasil. No entanto, o que vemos é uma grande precariedade na assistência à saúde, descompromisso do governo quanto à implementação e aprimoramento do SUS, Ministério da Saúde que só sinaliza com ações pontuais e episódicas. Há cada vez mais um incentivo à privatização dos serviços de saúde. Tudo isto sucateia o atendimento, prejudica a população, aumenta o sofrimento dos usuários.
Lenaura Lobato (Coordenadora do Núcleo de Avaliação e Análise de Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense): Entre as conquistas da democracia no Brasil, uma das principais foi a incorporação da noção de direitos sociais. Hoje toda a sociedade reconhece que saúde, educação, transporte, etc, são direitos dos cidadãos. E o que o movimento das ruas traz é a exigência de que esses direitos sejam cumpridos. Essa demanda é bem clara, mas as propostas para alcançá-las talvez não. A saúde é bem complexa em termos políticos e institucionais, porque o serviço nos ambulatórios e hospitais é apenas uma parte de um sistema que envolve vários interesses sobre os quais a população tem pouco conhecimento e informação, como por exemplo o papel da indústria de insumos e mais recentemente os interesses de grande empresas, inclusive bancos, na prestação direta de serviços. Aquilo que já é claro para a população nos transportes, ou seja, que os governos criam políticas de favorecimento a empresários em prejuízo dos direitos a um transporte público de qualidade, muitas vezes para favorecer projetos eleitorais, ainda é frágil na saúde. A população sabe que plano de saúde não é garantia, mas também desconfia que um sistema público seja viável. Temos denunciado as privatizações nos serviços, mas ainda não fomos capazes de mostrar à população que uma saúde pública e gratuita é mais eficiente e é o caminho para garantir um atendimento humano e de qualidade. O recado das ruas é claro: os governos estão surdos e a população quer ser ouvida e participar. Acho que em alguma medida esse recado serve também para os próprios movimentos e entidades, que precisam aprimorar e melhorar o diálogo com os cidadãos.
Paulo Amarante (Diretor do Cebes e pesquisador da Fiocruz): A população brasileira vem sofrendo uma violência institucional, estrutural, cotidianamente. Falta de direitos, de acesso aos bens públicos mais elementares, dentre eles os de saúde. Os dirigentes tratam com descaso e escárnio o sofrimento e as reivindicações na população, inclusive nos canais oficiais e legítimos de democracia participativa, como nos conselhos, conferências de saúde e audiências públicas. A frequente presença, até mesmo obrigatória, da corrupção nos processos públicos tornam as pessoas desesperanças e desesperadas. Acho inclusive que é um equívoco reduzir todas as manifestações de violência como "baderna", "vandalismo". Comparo muitas destas atitudes àquelas que algumas pessoas em desespero, sem ter o que fazer, considerando-se impotentes para fazer algo de útil ou produtivo, batem a própria cabeça numa parede! Vandalismo, baderna, violência é o que o Estado e os político têm feito sistematicamente com as pessoas, com as famílias, nos hospitais, nas escolas, nos transportes públicos, no cotidiano das cidades e das nossas vidas. De nada adianta reivindicar e esperar. Daí o desespero, o que não exclui a possibilidade de que pessoas inescrupulosas procurem tirar proveito (aí se incluem certos segmentos da direita saudosos dos períodos de ditadura, ainda mais agora que a Comissão da Verdade apura a história da repressão política no país).
Luis Eugênio Portela (Presidente da Abrasco): O povo quer que o Estado garanta a atenção à saúde com qualidade, o que não ocorre hoje.
Paulo Capel Narvai (Professor Titular da Faculdade de Saude Publica da Universidade de São Paulo): Não é que a saúde tenha entrado agora na pauta. Ela vem se mantendo na pauta dos setores populares, a desafiar a sociedade e o Estado. Lembro-me que, nas greves operárias da região do ABC, em SP, no começo dos anos 1980, havia cartazes onde se lia “Arroz, feijão, saúde, educação”. É que desde a criação da República, e atravessando todo o século XX, a saúde, mas sobretudo o problema da assistência aos doentes, nunca foi equacionado de modo adequado no Brasil. E o recado operário naquele momento foi bem claro: a saúde era parte da pauta dos trabalhadores. O que se sabe é que historicamente no Brasil sempre houve recursos quando problemas de saúde intervinham incisivamente na economia. Havia que sanear cidades e portos, controlar epidemias e isto foi feito, houve recursos. Mas a assistência aos doentes, como direito das pessoas, como reivindicavam os trabalhadores, foi reconhecida no plano jurídico apenas na Constituição de 1988. E o que se viu desde então? A falta crônica de recursos para financiar ações assistenciais e de promoção da saúde e para dar concretude ao direito à saúde. Não bastou que a economia brasileira alcançasse a posição em que se encontra hoje, entre as cinco principais, para que mais recursos fossem aportados à saúde. Entra governo, sai governo e a saúde segue sem recursos definidos e subfinanciada. Estamos mantendo, por imposição das áreas econômicas, não apenas do governo federal, um padrão de subfinanciamento que destoa muito do que a economia brasileira pode proporcionar ao sistema de saúde. É uma assimetria gritante. Prevalecem, no padrão brasileiro de financiamento da saúde, os interesses do capital financeiro, do qual as políticas sociais, incluindo a saúde, seguem reféns. É contra isso que gritam as ruas. E é preciso reverter este padrão. Contudo, não bastam mais recursos, conforme amplamente apontado pelos analistas dessas questões. É preciso redefinir as relações com o setor privado, que hoje parasita o sistema público além de induzir fortemente a sua desorganização e fragmentação. O “comando único” do SUS, estabelecido pela Constituição de 1988 é uma quimera. As mobilizações são uma esperança para superar a falta de recursos e a desorganização do SUS. Mas é preciso assinalar que o movimento social está sendo genérico e ambíguo em suas proposições. Palavras de ordem como “Dinheiro pra Copa não, pra saúde e educação sim”, ou “Põe os 0,20 no SUS”, são importantes para indicar a preocupação do movimento com a saúde, mas contrapõem coisas bem diversas e não antagônicas diretamente (Copa e SUS, p.ex.). O já clássico “Põe os 0,20 no SUS”, por sua vez, pode se esgotar no plano do gracejo, sem alcançar, no imaginário popular, a dimensão estratégica do subfinanciamento. O “põe no SUS” não significa, necessariamente, a defesa do SUS. A defesa “da saúde”, genérica, não significa a defesa “do SUS”. A saúde está, sem dúvida, na pauta popular, mas tem-se a impressão de que está mal posta.
Cebes: Qual o projeto de saúde capaz de satisfazer as necessidades do povo brasileiro?
José Temporão (Diretor Executivo do Isags, ex-presidente do Cebes e ex-ministro da saúde): Esse projeto é o da radicalização da reforma sanitária e a plena implementação da agenda defendida pelo Cebes e Abrasco. Mas destacaria a luta urgente por mais recursos para a saúde. A aprovação de 25% dos royalties do petróleo para a saúde foi um avanço mas agora temos que lutar pelos 10% das receitas da União. Só assim vamos dispor de uma base se sustentabilidade econômico-financeira que permita ampliar serviços e melhorar a qualidade.
Roberto Passos (pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – DF e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília): Avançar no SUS em todas as suas dimensões, regular realmente os planos de saúde e diminuir substantivamente as subvenções fiscais à assistência médica privada.
Laura Tavares Soares (Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro): Se entendemos como povo brasileiro aqueles que não tem condições de pagar (diretamente) planos de saúde ou médicos particulares (que é a maioria do povo brasileiro), sem dúvida o projeto de saúde passa pelo aperfeiçoamento e fortalecimento do nosso Sistema Único de Saúde, público e universal.
Maria do Socorro (Presidenta do Conselho Nacional de Saúde): O projeto de saúde deve estar articulado com um projeto de país, fundamentado numa democracia participativa e deliberativa, num desenvolvimento sustentável e solidário que altere o modelo produtivo agroexportador e urbano-industrial. Ancorado num modelo de sociedade que supere as desigualdades e todas as formas de preconceito e violência. Um projeto de saúde que seja concebido, planejado e executado de modo a atender as necessidades de saúde da população, portanto, articulado à outras políticas públicas sociais. O modelo de atenção à saúde não pode ficar refém desse modelo de desenvolvimento insustentável e de um modelo de sociedade que produz e se alimenta do conservadorismo e das desigualdades sociais e regionais. A promoção da saúde e a atenção básica devem ser os pilares dessa mudança.
Clair Castilhos (Secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos): É a implementação do Sistema Único de Saúde, uma política de Estado que contem os princípios fundamentais que devem nortear serviços públicos de saúde: universalidade, equidade e integralidade. Deve ser estruturada nas três esferas de governo e obedecendo a dinâmica da complexidade crescente, referência e contra referência. Todas estas diretrizes foram perversamente esquecidas em prol das inúmeras manobras “legisferantes” com vistas à privatização do SUS. Para satisfazer as necessidade do povo brasileiro é necessário superar a subserviência aos ditames do propalado Estado Mínimo, do“choque de gestão”, da “lei de responsabilidade fiscal” (não tem lei de responsabilidade social?), austeridade etc…É necessário acabar com as extremas restrições ao social e a máxima benevolência para o capital.
Lenaura Lobato (Coordenadora do Núcleo de Avaliação e Análise de Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense): As manifestações mostram que aprofundar a democracia é o caminho para garantir direitos. E isso vale também para a saúde. Se do ponto de vista técnico a saúde pública e financiada com recursos fiscais já demonstrou ser mais eficiente e eficaz, é preciso aprofundar esse conceito na política. Uma proposta antiga e que poderia ser implementada são os conselhos nas unidades de serviços. Isso aproximaria profissionais e usuários, abrindo à população a possibilidade e o direito de conhecer os serviços, suas necessidades e construir alternativas em sua defesa.
Paulo Amarante (Diretor do Cebes e pesquisador da Fiocruz): É preciso retomar a proposta da Reforma Sanitária e do SUS. Tratar do questão da saúde como um aspecto da qualidade de vida, que implica em serviços de saúde mas implica fundamentalmente em direitos, em participação, em transporte, em lazer, em cultura, em trabalho, enfim, em produção de vida. A população assiste perplexa a desoneração dos planos de saúde, a corrupção no SUS, aos desvios dos recursos da saúde
Luis Eugênio Portela (Presidente da Abrasco): O projeto do SUS, como sistema efetivamente único, público, gratuito, universal e igualitário. Esses princípios já estão inscritos na Lei, precisam ser postos em prática, com financiamento adequado, com carreiras de Estado para os profissionais de saúde, com autonomia gerencial para os serviços e com ênfase na atuação sobre os determinantes da saúde.
Paulo Capel Narvai (Professor Titular da Faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo): O projeto que logrou construir a unidade política que possibilitou inscrever a saúde como direito de todos e dever do Estado na Constituição de 1988 está encerrado. Acabou. As forças políticas comprometidas com aquele projeto romperam sua unidade no processo de construção do SUS. Os interesses foram tomando rumos diferentes e se articulando a projetos de sociedade distintos. A ideologia do SUS como um projeto civilizatório, como dizia o Sérgio Arouca, segue viva como utopia a nos estimular e animar nas lutas pelo direito à saúde. Concepção que, claro, vai muito, muito além de assegurar assistência aos doentes, e inclui promoção da saúde no sentido mais radical que essa expressão pode assumir. Mas a unidade política para perseguir esta utopia está quebrada. O Estado de Bem-estar Social brasileiro, ou mesmo um Estado Socialista, que estava na mira dessas forças políticas naqueles anos não se efetivou. O projeto neoliberou, hegemonizado pelo capital financeiro, seduziu muitos corações e mentes dentre as forças que lutaram pelo direito à saúde e a construção do SUS e vem se impondo no país. No plano setorial da saúde este projeto corresponde ao sucateamento contumaz do sistema público, universal, sob gestão estatal, buscando a derrota dessa concepção, e a afirmação da saúde como mercadoria, a ser gerida pelo setor privado, seja com fins abertamente lucrativos, tomando o cuidado de saúde como negócio, seja sob a aparência de finalidade social. O problema é que, nas manifestações, não apareceu, até agora pelo menos, com clareza, o que a pauta popular defende, para onde ela aponta, em relação à saúde. Das noites de junho não veio luz suficiente sobre este aspecto. E alguns desconfiam, eu entre eles, que há um mal dissimulado desprezo pela coisa pública e, portanto, pelo SUS, nessa pauta. Isso de “enfia no…”, não sei, não. É real a possibilidade de “obamização” do SUS, ou seja: ampliar a cobertura “da saúde”, não pela ampliação do SUS, seu fortalecimento e organização, mas, simplesmente, ofertando “planos de saúde” para todos, segundo o receituário liberal. As ruas não foram claras, mas o tempo, como se sabe, é o senhor da razão e nos esclarecerá sobre para onde é mesmo que estamos indo.
Cebes: Qual é a sua opinião sobre as prioridades de governo, basicamente centralizadas nas Upas, Redes cegonha, emergências, entre outras?
José Temporão (Diretor Executivo do Isags, ex-presidente do Cebes e ex-ministro da saúde): Vejo uma certa fragmentação. Esses temas evidentemente são todos importantes em sua área de abrangência e devem ter continuidade. Mas existem divergências profundas por exemplo em relação a política de drogas e a participação das comunidades terapêuticas ligadas a igrejas nessa política. Sinto falta de uma opção radical pela universalização do PSF através de uma rede nacional integrada e de qualidade.
Roberto Passos (pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – DF e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília): Acho que é o simplismo de querer fazer uma parte funcionar bem ou mal, independentemente do todo, dando a impressão de que as coisas estão melhorando e, com isso, ganhando voto. O SUS não pode ser um projeto eleitoral, e só tem futuro se mantido como espaço suprapartidário.
Laura Tavares Soares (Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro): Não funcionam isoladamente, sem uma integração da rede de atendimento nos seus diversos níveis de complexidade. O acesso a essas formas de atenção sem a constituição de uma rede integrada e hierarquizada, com o fortalecimento de uma Atenção Básica verdadeiramente resolutiva, continua restringindo o acesso de parcelas importantes da população a uma atenção à saúde efetiva.
Maria do Socorro (Presidenta do Conselho Nacional de Saúde): As UPAS são importantes onde há vazios assistenciais e redes públicas de saúde pouco estruturadas, predominantemente nos municípios de pequeno porte do interior do país assim como em áreas urbanas menos favorecidas. Acontece que estas estão concentradas em áreas urbanas e até mesmo funcionando em locais desnecessários, concorrendo com outras redes de urgência já instaladas. O problema da urgência, inclusive das UPAS, ainda é a procura de usuários que deveriam ser atendidos na atenção básica, mas que o fazem porque o atendimento oferecido em muitas unidades básicas de saúde ainda é precário. Outro problema que ocorre relativo á insatisfação do povo nos serviços de urgência, é porque a população desconhece as regras da regulação. A regulação fica sob o poder médico e a população não participa. Isso gera muitos conflitos. A Rede Cegonha pode ter ajudado a ampliar os serviços ofertados para a gestante e a criança, mas o acesso de mulheres de baixa renda e a qualidade do atendimento ainda precisam melhorar. Não há no Rede Cegonha muitos componentes da política nacional de saúde integral para as mulheres, entre estes a educação em saúde. Fato é que o Brasil ainda tem altos indicadores de mortalidade materna, por causas evitáveis. O Rede Cegonha não enfrenta a situação de mulheres vitimas de aborto inseguros. Este problema é de saúde pública. O Estado brasileiro é laico, portanto o governo Dilma não pode ficar refém de grupos que se sentem donos da moralidade brasileira enquanto milhares de mulheres pobres, negras e rurais morrem.
Clair Castilhos (Secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos): O governo se limita a realizar/estimular ações focalizadas, voltadas para alguns problemas específicos. O exemplo mais gritante é a Rede Cegonha que reduziu uma política ampla e abrangente para o atendimento à Saúde da Mulher a um programa do tipo “materno-infantil” e com metas vinculadas ao cumprimento dos Objetivos do Milênio. Há necessidade de organizar as Upas, os Hospitais, as emergências, as UBS mas, todas integradas em uma rede de saúde e não como iniciativas isoladas e promocionais.
Lenaura Lobato (Coordenadora do Núcleo de Avaliação e Análise de Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense): Nós estamos num ponto complicado, porque uma vez que se consolide a prestação privada como está se dando, será bem mais difícil voltar atrás. Esses mecanismos que os governos têm criado, embora alcancem melhorias pontuais, não mudaram de forma significativa os serviços. Como a situação é dramática, onde vc põe um serviço, melhora alguma coisa. E não mudam como necessário porque sua lógica é segmentada, desarticulada do conjunto da rede e sem base real em necessidades. E é perversa, porque por vezes está baseada em compra de serviços ao setor privado, que vai aos poucos imprimindo sua lógica, que é a da lucratividade direta ou da reprodução da lucratividade dos setores de insumos. É preciso reiterar a velha bandeira de que saúde não é mercadoria. É possível sim um sistema público e de qualidade. E mais importante, precisamos conectar isso com a perspectiva do desenvolvimento social e econômico como vem sempre dizendo o Cebes e a Abrasco. Nós temos recursos, capacidade técnica e de gestão para isso.
Paulo Amarante (Diretor do Cebes e pesquisador da Fiocruz): O capítulo do SUS na constituição e as conferências de saúde estão cheias de projetos sobre a saúde no país, mas os governos só se preocupam com os interesses dos empresários, do complexo médico financeiro. A saúde deixou de ser a qualidade de vida para se tornar meramente mercadoria. Perdemos!
Luis Eugênio Portela (Presidente da Abrasco): Não há dúvidas de que esses programas se referem à graves problemas de saúde. A questão, contudo, é que realizados de forma fragmentada perdem eficácia. Do ponto de vista assistencial, o desafio é construir redes integradas e regionalizadas de serviços, o que exige aumento do investimento público em saúde e um novo pacto federativo, em que a União, os estados e os municípios compartilhem recursos e coordenem suas ações para atender as necessidades.
Paulo Capel Narvai (Professor Titular da Faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo): As lideranças políticas, que a massa identifica como “os políticos”, e os partidos que pesam no jogo político, com raríssimas exceções, defendem “a saúde”, mas não defendem “o SUS”. Isto fica claro como a luz do sol nas campanhas eleitorais. Nelas, lá estão todos se dispondo a defender “a saúde e a educação, como uma prioridade absoluta do nosso governo”. Todo mundo é a favor “da saúde”, assim como todo mundo é a favor da proteção das florestas, das baleias, das crianças, dos idosos… Mas, vale chamar mais uma vez a atenção para algo importante e reiterar: ser “a favor da saúde” não é a mesma coisa que ser “a favor do SUS”. O problema, insisto nisso, é que os gritos que vieram das ruas nas noites de junho são muito parecidos com essa conversa das campanhas eleitorais, nas quais “os políticos” nunca, nunquinha, vinculam suas imagens ao SUS. Eles sabem, pelas pesquisas de opinião às quais têm acesso, que a imagem do SUS não é boa e tratam de manter prudente distância do SUS, e seus símbolos e tudo o que ele representa. Isto é um enorme problema para os que lutam pelo direito à saúde e consideram o SUS um poderoso instrumento para viabilizá-lo em nosso país. No plano simbólico nós estamos perdendo as batalhas que travamos na guerra da saúde. Uso a expressão “guerra da saúde” com o sentido que lhe atribuiu o David Capistrano, que dizia que nosso trabalho é uma guerra, uma guerra contra as consequências, no campo da saúde, da miséria, da fome, da ignorância, dos ambientes de trabalho insalubres e inseguros, de toda uma forma de organização social violenta, cruel, geradora de desigualdades brutais. Numa palavra, dizia o David, nós travamos uma guerra, em defesa da saúde e da vida, contra o rastro de sofrimento e de morte com o qual o capitalismo brasileiro marca a existência de milhões de pessoas. Essa guerra, digo eu, se trava também, e de modo feroz, no plano simbólico. O SUS é vítima, diariamente, de gestores e de políticos que o ocultam do povo. Ocultam sua logomarca e outros símbolos. Com isso, ajudam a desarmar a população em sua defesa, e a confundem. Preferem, ao contrário, criar seus próprios símbolos, marcas. E tome programa-disso, projeto-aquilo. Boa parte disso que se chama de “Unidade-disso-e-daquilo”, “Redes-de-não-sei-o-quê” é, com todo respeito, resultado de decisões tomadas por marqueteiros e não por gente do ramo, quer dizer, por profissionais de saúde pública, para nem falar de sanitaristas, para não parecer corporativismo. Um certo ex-Presidente da República diria que é muito trololó para falar de coisas simples, que se referem a nada mais do que a organização e gerência do sistema de saúde. Parece haver uma tendência a utilizar novas denominações para coisas velhas, antigas, boas ou más, não importa, mas coisas consagradas, tanto no plano teórico quanto na prática, como se o uso de um novo nome bastasse para revigorar essas coisas. Fala-se desses novos nomes e se oculta o SUS que é, afinal, o que importa mesmo, e que por essa razão, é o que deveria estar em destaque, ser valorizado nas batalhas simbólicas para, fortalecido, fazer frente aos que, sem poder entregar o que prometem, vendem saúde com imagens de helicópteros. Enquanto bilhões vão para as contas bancárias de empresas que lucram com doença e morte, os que se opõem a isso parecem perder o rumo, imersos em debates infindáveis sobre modelos abstratos e nomes pomposos. Até que a rua ruge e cobra ações, mais do que discursos.
Cebes: Quais os caminhos para conquistar o direito universal à saúde, gratuita e de qualidade?
José Temporão (Diretor Executivo do Isags, ex-presidente do Cebes e ex-ministro da saúde): As ruas estão reabrindo para o movimento da reforma sanitária a oportunidade de retomarmos as raízes e origens do movimento dos anos 70 e 80 do século passado: Saúde é democracia, democracia é saúde!
Roberto Passos (pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – DF e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília): Qualificar o movimento sanitário no longo prazo e qualificar os dirigentes no entendimento dos problemas reais, de tal modo que deixem de lado a busca da solução eleitoreira.
Laura Tavares Soares (Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro): O direito universal só se garante com uma rede integrada e hierarquizada, com distribuição territorial justa, com atenção básica resolutiva (e não uma atenção primária "pobre" para "pobres"), com profissionais de saúde efetivos – funcionários públicos com carreira (eliminando a contratação precária), e, obviamente, com um financiamento público suficiente, com o aumento do percápita no gasto em saúde, e com o fim dos subsídios e isenções para o setor privado. Além disso, defendo antigas bandeiras onde o financiamento da Saúde é integrante do Orçamento da Seguridade Social, com um percentual fixo como patamar. Vale lembrar que a receita da Seguridade Social cresce acima do PIB desde sempre, o que garantiria não apenas um volume maior de recursos como também a necessária estabilidade, com fontes de financiamento combinadas.
Maria do Socorro (Presidenta do Conselho Nacional de Saúde): Participação democrática. Valorização, estruturação e autonomia dos conselhos de saúde. Politização do debate do direito à saúde em todos os setores da sociedade brasileira. Cobrar posicionamento político dos governantes em todos os níveis. Mobilizar e comprometer as entidades e movimentos nacionais formadores de opinião.
Clair Castilhos (Secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos): O povo sabe muito bem o que quer. O governo precisa apenas ouvi-lo e respeitar as suas demandas. Precisa elaborar e executar um Plano Nacional de Saúde com base nas propostas debatidas e aprovadas, no país inteiro, através das Conferências Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde. Não precisa inventar a roda, basta cumprir a constituição e as leis 8080/90 e a 8142/90 assim como garantir um financiamento estável, suficiente e permanente para a saúde. O caminho é retomar a luta pela Reforma Sanitária!
Lenaura Lobato (Coordenadora do Núcleo de Avaliação e Análise de Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense): Recuperar a ideia de bem estar social, de democracia com igualdade e justiça social. Isso significa que as estruturas estatais, da união, dos estados e municípios, têm que estar voltadas prioritariamante para o bem estar dos cidadãos. A saúde universal e de qualidade está intrinsecamente vinculada à ideia de bem estar, e depende dela para se concretizar. O povo de novo nas ruas já é um glorioso começo.
Paulo Amarante (Diretor do Cebes e pesquisador da Fiocruz): Precisamos refazer nosso pacto de cidadania, retomar o conceito de saúde tal como o construímos a partir do documento "A Questão Democrática na Área da Saúde" proposto pelo Cebes em 1979, que inspirou a Constituição de 1988, e que ainda hoje não foi colocado em prática.
Luis Eugênio Portela (Presidente da Abrasco): Nesse caso, aplica-se bem o verso do poeta modernista espanhol António Machado: "no hay camino, se hace camino al andar". E como andou nos anos 80, pela democracia, o povo brasileiro está agora andando de novo….
Paulo Capel Narvai (Professor Titular da Faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo): São muitos os caminhos, ainda mais num país continental e tão contrastante como o Brasil. Mas há iniciativas que têm caráter estratégico, são decisivas e dizem respeito a todo o país. É inadiável, a meu, ver, criar uma Carreira do SUS, com abrangência nacional, e envolvendo instituições federais, estaduais e municipais. A carreira dos médicos, que vem sendo discutida em separado, deve estar no interior dessa Carreira do SUS, e não fora dela. Essa Carreira precisa conviver com diferentes modalidades de contratação e gestão de pessoas, respeitar direitos trabalhistas, desprecarizar o trabalho em saúde e possibilitar a gestão participativa, envolvendo trabalhadores e população, dentre outras exigências. Sem respeito aos trabalhadores do setor, sem dotá-los de uma Carreira, não haverá o SUS que delineamos na Constituição de 88 e na legislação setorial. Outra iniciativa crucial é acabar com o clientelismo e as barganhas envolvendo cargos de direção e assessoramento do SUS, e fixar critérios para o provimento de cargos. Estes critérios devem contemplar a Carreira do SUS, devem possibilitar a composição de listas de indicados, mas, também, dar flexibilidade às escolhas que os eleitos democraticamente precisam ter para compor suas equipes de governo. O que não se pode suportar mais é que uma indicação de “um político” para um cargo público se sobreponha ao que querem os que trabalham numa unidade de saúde qualquer e aos se utilizam dessa unidade. É fundamental seguir avançando no fortalecimento dos conselhos e conferências de saúde e assegurar que participem efetivamente das decisões sobre os orçamentos da saúde e a aplicação dos recursos, em todos os níveis. Assegurar os recursos para a saúde e que sejam aplicados com zelo, tanto na administração direta quanto na conveniada, e não permitir que recursos públicos financiem a iniciativa privada, que nada tem de suplementar e que se opõe, combate e pretende substituir o SUS. Recusar a saúde como mercadoria, e reafirmá-la como direito a ser equacionado no âmbito das políticas públicas implementadas por um Estado democrático. Voltar a unir, portanto como, aliás, sempre defendeu a Reforma Sanitária, saúde e democracia.
Seja o primeiro a comentar