O BoletIN abre espaço para a reflexão. Depoimento de Rafael Cangemi Reis, médico recém-formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), hoje trabalhando em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), discute como uma formação mais humanizada, que vai além dos conhecimentos técnicos, pode ser determinante para a prática da boa medicina e o cuidado com o paciente.
Rafael relata duas situações vivenciadas por ele recentemente para pôr em xeque a “síndrome do recém-formado” versus a “síndrome dos bem-formados”. Para Lilian Koifman, professora do Departamento de Planejamento em Saúde do Instituto de Saúde da Comunidade da UFF, é gratificante perceber que os conceitos desenvolvidos no Programa Prático Conceitual de currículo da UFF (Medicina Preventiva e social e Trabalho de Campo Supervisionado) podem fazer toda a diferença na formação de bons profissionais.
Leia na íntegra a carta-relato de Rafael Cangemi Reis.
“Prezados professores,
Gostaria muito de compartilhar com vocês as minhas experiências e constatações em um mês de formado. É impressionante como o atendimento e o olhar dos alunos da UFF é diferenciado em relação aos pacientes. Estou trabalhando em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com vários colegas formados na UFF e lá percebo por conversas e por comentários dos próprios pacientes que tal médico é muito bom porque soube ouvir a queixa, porque o examinou, explicou sobre a doença etc. Quando percebo, vejo que estão falando dos colegas que se formaram comigo na UFF. No início confesso que fiquei um pouco assustado com tais comentários, pois na minha cabeça esse é o nosso papel: ouvir, examinar, pensar e orientar. No entanto, com o passar dos plantões a grande constatação que tive foi que muitos dos colegas médicos estão ali para fazer a fila andar! Mal colhem uma anamnese, ou sequer olham para o paciente. São absurdos que me deixaram perplexo e reflexivo.
Conversando com meus colegas de turma (que estão trabalhando em locais diversos), a reflexão e a indignação são as mesmas, porém a atitude de ação é contrária. Da mesma maneira ouvem, examinam, pensam e orientam sem ter a coragem de mandar o paciente para casa sem pelo menos uma sucinta anamnese e exame físico. Será que isso é a síndrome do recém-formado? Medo de perder o carimbo? Não acredito. Acredito na síndrome dos bem-formados que foram orientados ao longo de toda a formação médica em relação à necessidade de um olhar diferenciado e de uma medicina mais humanizada que vai além dos conhecimentos médicos propriamente ditos. Posso dizer que é unânime a nossa preocupação em não errar e fazer uma boa medicina.
Essa constatação pode até ser sumária, mas comparo com os colegas de outras faculdades e vejo sim que a nossa formação na UFF é o diferencial. Por mais que haja dificuldade de aceitação, por alguns motivos que conhecemos, vejo que os conceitos que fazem parte do Programa Prático Conceitual de nosso currículo (Medicina Preventiva e social e TCS) se incorporam aos conhecimentos médicos propriamente ditos. É uma pena que nem todos percebem isso! Reconheço que o currículo precisa ser reestruturado corrigindo erros, diminuindo repetições, modificando as formas de abordagem, etc. Porém, tenho claro que a sua estrutura é o caminho e é fundamental para uma boa formação médica.
Para melhor exemplificar, reflito sobre duas situações que presenciei essa semana, e que confesso que me deixaram bastante assustado devido às barbaridades e ao péssimo atendimento de alguns colegas médicos que sequer olham, ouvem ou examinam o paciente. Revi dois pacientes já atendidos na UPA com a queixa principal não resolvida em algumas consultas anteriores. A queixa principal do paciente era tosse purulenta e febre há um mês. Porém, quando “perdi” 10 min na minha anamnese suspeitei de AIDS e suas complicações infecciosas, e quando examinei em 5 min tive a certeza do diagnóstico apenas ao juntar dados clínicos com as úlceras orais. E sabe o que fizeram com ele? Penicilina Benzatina e Amoxicilina para tratar amigdalite bacteriana!!!!. Consegui providenciar os exames e infelizmente mais um caso de AIDS foi confirmado! Outra situação foi a revisão de uma paciente com queixa de dor devido a uma hérnia inguino-escrotal. Reabro sua ficha e me deparo com a triste anamnese: Dor nas pernas; Diagnóstico: Mialgia; Tratamento: Dipirona Intramuscular?!!!!
Fiquei me questionando o porque daquilo. Será que era para não ter que palpar a hérnia do paciente? Confesso que não sei. O fato é que apenas ouvindo o paciente e observando cheguei a conclusões e pude ajudá-lo da melhor maneira possível.
Tudo isso me levou a refletir: Como vai a Medicina? Os pacientes me acham o melhor médico do mundo porque ouço, converso, examino e explico. Não que o seja, mas a banalização da medicina se tornou tamanha que, quando retomamos a verdadeira prática médica, somos vangloriados. Será que esse não deveria ser o papel de todo médico? Muitas das queixas se resolvem em um simples esclarecimento. A medicina não é feita de remédios e exames complementares, mas é feita pelo contato, pelo olhar, pela conversa e por conhecimentos técnicos científicos, que nos conduzem a utilização de outras tecnologias para a resolução dos problemas.
A impressão que fica é de que a UFF apesar das dificuldades tem formado médicos antenados e preocupados com a saúde e qualidade de vida do paciente. Sabemos que os problemas são muitos, as soluções diversas, o movimento de mudança é lento, mas uma coisa precisamos ter em mente: A UFF está no caminho certo para a formação de médicos mais humanos e pensantes no que tange ao entendimento do paciente e ao contexto social e cultural em que esse está inserido.
Parabéns aos professores que lutam e insistem em buscar uma melhor formação e uma transformação dentro da nossa universidade”.
Rafael Cangemi Reis
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