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Artigo: Reserva do Possível e Senso Comum

felipe_dutra_asensi.jpgO professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito-RJ) e pesquisador associado do Lappis, Felipe Asensi, discute em artigo sobre o chamado “princípio da reserva do possível”. Para ele, há muitos equívocos nas discussões do Direito em torno dessa ideia. “Ninguém é obrigado a concordar com o argumento da reserva do possível, mas, se for para defendê-lo, que o seja de maneira inteligente, com provas, dados e elementos realmente construtivos dos direitos”, defende em artigo publicado recentemente no jornal Carta Forense, que o Lappis reproduz aqui.

 
Por Felipe Asensi
Publicado originalmente no jornal Carta Forense

É curioso como algumas expressões recebem uma adesão e repetição no mundo do direito brasileiro sem uma reflexão que vá além do senso comum. Profissionais do direito, estudantes, professores e doutrinadores tendem a “se apaixonar” por determinadas ideias e a reproduzirem de maneira ingênua e superficial o que elas significam em seu cotidiano. Isto é o que ocorre com a ideia de reserva do possível no Brasil.

O argumento da reserva do possível, antes mesmo de ser usado pelo Estado brasileiro nas ações em que é réu, foi importado e recebeu nova roupagem aqui pela via doutrinária do direito. Assumido como originariamente alemão, este argumento recebeu forte adesão nas reflexões constitucionais brasileiras. Isto não quer dizer que houve uma discussão séria ou aprofundada sobre este argumento, o que permitiu a sua introdução ingênua no imaginário daqueles que trabalham com o direito, especialmente na sua interface com as políticas públicas.

Exemplo disso é a assunção de diversos constitucionalistas no Brasil de que a reserva do possível é um princípio constitucional. Ora, o princípio espelha valores de uma determinada sociedade que se cristalizam econômica, política, social e culturalmente. Não há respaldo constitucional para se afirmar que a reserva do possível seja um princípio, especialmente porque não se pode afirmar, de modo algum, que a lógica constitucional seja de restrição de direitos ou de políticas públicas. Presente em petições, julgados, livros e artigos, o chamado “princípio da reserva do possível” não passa de uma miragem!

Outro equívoco das discussões sobre o argumento da reserva do possível é o seu efeito: a “luta entre cidadãos”. Em saúde, por exemplo, é muito comum se alegar que ao Estado não caberia custear um tratamento de R$ 500.000,00 por mês, pois uma coletividade seria prejudicada com tamanha destinação de recursos para somente um indivíduo. Abandona-se totalmente a idéia de cidadania e de sujeito de direitos para colocar um cidadão contra o outro de maneira fortemente egoística. Ao se criar a “luta entre cidadãos” e ao se fortalecer isso com a reserva do possível, abre-se ao Estado a possibilidade de nada fazer, seja para o indivíduo ou para a coletividade. A “luta entre cidadãos” afasta o verdadeiro foco: o dever do Estado de efetivar direitos e promover políticas públicas ao máximo.

Um terceiro equívoco refere-se à inexistência de ônus da prova de quem utiliza o argumento da reserva do possível. Ao ser ingenuamente reproduzida como um dogma, isto é, como um ponto de partida inquestionável, desaparece o dever do Estado de provar que realmente não possui recursos financeiros para uma determinada política. Não bastando a tentativa de restringir direitos ou de colocar um cidadão contra o outro, a reserva do possível ainda é usada como um dado e sem qualquer discussão séria e aprofundada sobre o motivo pelo qual não há determinado recurso. Não há por conta de alocação ineficiente? Ou porque houve corrupção? Ou será que houve eleição equivocada de prioridades? O problema foi de gestão ineficiente? Ou realmente não há recursos porque a arrecadação tributária foi insuficiente?

Um quarto equívoco diz respeito à ausência de alteridade, isto é, de se colocar no lugar do outro. Um exemplo pode valer mais que mil palavras: uma pessoa bem conservadora pode mudar de opinião facilmente sobre a desobrigação do Estado custear um medicamento de R$ 30.000,00 por mês quando o problema de saúde ocorrer na família dele. O ato de se colocar no lugar do outro com freqüência tem se rendido ao senso comum jurídico.

Por fim, um quinto equívoco é a resistência em conceber o Judiciário e as demais instituições jurídicas como meios legítimos de efetivação de direitos, sobretudo os direitos sociais. O argumento da reserva do possível, em geral, vem acompanhado de uma crítica ao impacto econômico da atuação das instituições jurídicas. Porém, os juristas deixam de lado uma reflexão sobre o papel do Legislativo e do Executivo, seus limites e desafios. É própria do Estado Democrático de Direito a possibilidade de mútua influência entre os Poderes e as discussões sobre os limites desta influência devem abarcar os três Poderes, e não apenas um.

De fato, este argumento econômico de restrição de direitos tem sido amplamente utilizado pelos juristas com uma forte dose de senso comum e sem versar de maneira cuidadosa sobre seus efeitos. Como um “mantra”, tem sido equivocadamente propagado para causar um cenário de desobrigação do Estado sem qualquer dado concreto sobre a escassez de recursos ou sobre como são alocados. Afinal, por que não discutir também a verba de publicidade que o Executivo dispõe ou a quantidade de assessores de parlamentares? Esta alocação de recursos é tão importante quanto o impacto de sentenças judiciais.

De modo algum quero negar a existência de municípios ou Estados com sérios problemas de recursos financeiros, principalmente quando se trata de direitos sociais. O que causa estranheza é que a bandeira da reserva do possível seja hasteada por tanta gente que, ao fim e ao cabo, apenas reproduz o senso comum. Ninguém é obrigado a concordar com o argumento da reserva do possível, mas, se for para defendê-lo, que o seja de maneira inteligente, com provas, dados e elementos realmente construtivos dos direitos.
 

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