XI Cidadania do cuidado

“Ação é vontade, e não virtude”

IMG_1763A primeira mesa do XI Seminário, "Entre a vontade e a virtude nas práticas do cuidado: por um ethos da ação e da responsabilidade na saúde", foi um convite para pensar coletivamente o direito pleno a uma saúde para todos. Coordenado por Roseni Pinheiro (IMS/UERJ), o debate uniu as ideias de José Ricardo Ayres (Fac. Medicina Preventiva-USP), Felipe Rangel Machado (EPSJV/Fiocruz) e Artur Perrusi (UFPB) em torno de diferentes formas de atuação política e desenvolvimento da sociedade no campo da saúde.

 

Felipe Rangel Machado (EPSJV/Fiocruz) abre sua exposição comentando a construção do Direito no Brasil. Segundo ele, a construção do Direito foi realizada em espaços muito institucionalizados, fechado a especialistas, sendo a sociedade civil praticamente apartada do processo. Na busca por direitos, não se pode pensar nele só constituído, pois há uma margem de atuação devido à interpretação. Caso contrário, os regimes de legalidade jurídica podem ser injustos.  "A ideia de justiça tem que ser deslocada da letra da Lei. Direito é conservador por natureza, não foi pensado para dar conta dos problemas sociais atuais, não oferece respostas imediatas aos anseios da população. No regime democrático, deve-se lutar de outra forma, lutar por interpretação, pensar direito de forma responsável para dar conta das questões sociais".

IMG_1764Machado também comentou a questão da Judicialização do Direito para a saúde. "A Judicialização busca interesses individualizados e interpretação voltada para a lógica individual do direito do consumidor. Qual o efeito coletivo dessa interpretação? Ela não é pensada como ação política, mas tem efeitos políticos concretos. O Judiciário não propõe novas soluções, acaba garantindo de forma imediata na saúde e tende a apequenar o direito,(…) além de reforçar uma lógica de mercado, sendo a medicalização o caso mais expressivo".

Essa visão da saúde como mercadoria e a ideia de que os serviços de saúde públicos são para os "mais pobres", diz o pesquisador, ainda impera. "Quando as pessoas melhoram a renda, buscam os serviços privados, o que não significa que sejam melhores. Saúde não é vista como direito, mas como mercadoria. Há sindicatos reivindicando isso. Há a necessidade de romper com essa ideia".

IMG_1767"O Direito é fundamental para que o cuidado possa, de fato, se tornar público", destacou, em seguida, o professor José Ricardo Ayres (USP), que também falou sobre a necessidade do reconhecimento para a efetivação da visibilidade humana perante o campo do Direito à Saúde. "Em que medida o sistema de direito está sendo produtor de exclusão ou vulnerabilidades, no sentido de não visibilidade do outro?" Para ele, temos que pensar em como legitimar a criação de  direitos pela humanidade e construir reconhecimento em diversos planos. Nesse âmbito, estão inseridas várias faces da integralidade: promoção da saúde, prevenção, reabilitação, multiprofisionalidade, relações, interações.

Artur Perrusi (UFPE) levou à discussão uma experiência no campo de pesquisa sobre a AIDS, que nos últimos anos observou mudanças nas representações sociais e nas práticas terapêuticas sobre a doença. "A AIDS inscreve-se, na verdade, num contexto histórico bem complexo que relaciona transformações de longo alcance na sociedade moderna e re-significações no processo saúde-doença". Segundo Perrusi, a referida doença é, de forma inédita, uma construção social a olhos vistos. "Surge e se transforma sob nossos olhos. Cria medos e emoções, reproduzindo outros mais antigos. Ocupa o espaço público e exige o reconhecimento do Estado. Torna evidente a articulação entre o biológico, o político e o social".

IMG_1778A politização da AIDS, diz o pesquisador coloca uma luz na naturalização do social e dos valores impostos pela biomedicina. "A naturalização já aparece conectada à individualização do processo saúde-doença. É uma medicina que isola e captura o indivíduo por meio de uma acentuada sofisticação tecnológica. A politização bate de frente contra o predomínio do individual sobre o coletivo, do natural sobre o social, do técnico sobre o político, do médico-assistencial sobre o médico-sanitário e, enfim, do privado sobre o público".

Ao encerrar as exposições, Roseni Pinheiro tece uma rede com os conceitos abordados. "Duas categorias centrais que fazem nexo com trabalho do Arthur (Perrusi) e do Felipe (Machado) tem a ver com a idéia de julgamento e responsabilidade – a forma como eu decido o meu projeto terapêutico, a minha política, como construo, como implemento, como formulo, que tem a ver com a forma de julgar e responsabilizar. Uma questão que tem que ser problematizada: o fio da navalha entre autonomia e alteridade", opina. "O direito, de alguma maneira, cria essa encruzilhada. Ambas as apresentações falam de processos de invisibilidade, o que tornam questões humanas invisíveis. Quem é essa pessoa que demanda direitos? Não é apenas como prover direitos? Quem é esse ator/autor e essas experiências?".

IMG_1779Nesse sentido, para a professora e pesquisadora, o processo de escuta também dever ser levado em conta. "Como fazer escuta qualificada de quem não fala, de quem não ouve, de quem não anda, de quem está no CTI? Se ensina a escutar? Dá para ensinar a virtude? Para Hannah Arendt, a ação é vontade, e não virtude. O potencial de transformação está dado pela vontade como eu me apresento nesse espaço público e como me afeto pelo outro".

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