Nos últimos dois meses, uma série de protestos tomou conta do país, em um fenômeno ainda complexo de ser explicado. As primeiras manifestações que contestavam os aumentos nas tarifas de transporte público, principalmente em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, ganharam forte apoio popular, principalmente por conta da repressão truculenta e desproporcional pela Polícia Militar nas passeatas. O povo se organizou, sobretudo, via redes sociais e ocupou as ruas do Brasil e até mesmo em cidades no exterior com demandas e reivindicações das mais diversas.
Um dos pontos mais questionados é a má qualidade dos serviços públicos, dentre eles o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). E em resposta à grande repercussão da “voz das ruas”, o governo federal anunciou uma série de propostas e medidas, como a “importação” de médicos/as estrangeiros/as para suprir demandas. Jáo Congresso Nacional votou diversos projetos que apareceram na pauta dos protestos, como o Ato Médico e a inclusão de um dispositivo que destina 25% dos royalties do petróleo da camada Pré-Sal para a saúde.
Para Sulamis Dain, Doutora em Economia pela Universidade Estadual de Campinas, pós-doutora em Economia por Berkeley em 1989 e professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), “a questão mais importante que emergiu das manifestações no campo da Saúde foi a demanda por um sistema de universal de saúde (mais saúde e saúde melhor), vinda de toda a população presente às manifestações e não apenas da população de baixa renda. O povo pareceu acordar para o tema da saúde como direito social, o que é uma oportunidade imensa para obter apoio para medidas voltadas ao aperfeiçoamento do SUS”.
Segundo Sulamis, o discurso da presidenta Dilma Rousseff para responder às manifestações traduz uma nova consciência da complexidade da política de saúde e da urgência de soluções de natureza estrutural. A professora acredita que a “força das ruas” enfraquece a tendência ao que chama de “privatização da saúde”.Para ela, isso pode se dar através da busca de soluções como, subsídios aos planos de saúde e em geral as opções por soluções fora do financiamento e regulação estatal. “O povo diz que paga imposto e quer ‘seus direitos’, o que supõe uma solução da questão pelo Estado, não necessariamente uma estatização, mas certamente não uma privatização”, opina Sulamis.
ROYALTIES – Uma das principais demandas dos protestos foi o projeto de lei que destina 75% dos royalties do petróleo para a Educação e 25% para a Saúde. Aprovado no Senado em 26 de junho, esse projeto deve ser finalizado na Câmara no dia 16 de julho. Há ainda negociações quanto à verba que viria do Fundo Social do Pré-Sal, que, de acordo com a proposta já aprovada por senadores/as, 50% dos rendimentos do fundo seriam destinados à Educação e à Saúde. Outra opção indicada pelo deputado federal André Figueiredo (PDT-CE) reserva 50% de toda a verba – e não só os rendimentos dela – a estas áreas até 2022.
“A respeito dos recursos do Pré-Sal, acho uma conquista muito expressiva, dado que a Saúde simplesmente não constava das vinculações da receita do Pré-Sal, ao contrário da Educação e dos gastos em ciência e tecnologia. A Saúde tem um presente, mas também espero que tenha um futuro. Assim, a previsão de receita expressiva, mesmo que no futuro, me conforta e alarga o horizonte de investimento do setor”, opina Sulamis.
Além da verba de royalties, a professora lembra que o “desfinanciamento” da saúde também está na pauta das reivindicações e que, nos próximos dias, deve ser votada a Emenda Constitucional (EC) 29 que, originalmente, obrigava a União a disponibilizar 10% de suas Receitas Tributárias Brutas para o Sistema Público de Saúde e 10% de suas Receitas Tributárias Líquidas, o que significa dizer que em vez de destinar R$ 120 bilhões para a saúde, o governo disponibilizaria R$ 63,8 bilhões. “A pressão pela revisão do financiamento da saúde é uma realidade, que permite denunciar a quebra de compromisso com as determinações constitucionais de aplicação de recursos no SUS, e o subfinanciamento crônico, com enorme legitimação popular”, afirma Sulamis.
ATO MÉDICO – Entre os projetos votados no Congresso para atender a “voz das ruas”, está o projeto de Lei 268, de 2002, mais conhecido como “Ato Médico”, que regulamenta a atividade médica, restringindo algumas práticas e procedimentos a esses/as profissionais. No dia 11 de julho, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei, vetando dez itens, argumentando que os pontos poderiam causar impacto no atendimento dos estabelecimentos privados e nas políticas públicas do SUS. Apresentado em 2002 pelo então senador Benício Sampaio, o projeto saiu do Senado somente em 2006, na forma de substitutivo da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), relatora na Comissão de Assistência Social (CAS). Enviado à Câmara, o projeto do Ato Médico foi modificado novamente e voltou ao Senado como novo substitutivo (SCD 268/2002) em outubro de 2009 e voltou à pauta este ano. Na visão dos/as críticos/as à proposta, o projeto supervaloriza os/as médicos/as, tornando as demais profissões de saúde “subalternas”.
Foram vetados pela presidenta Dilma itens como os que restringiam aos/àsmédicos/as funções como a de aplicar injeções e indicar o uso de órteses e próteses. Entre os trechos mantidos estão os que definem que a indicação e execução de intervenção cirúrgica é atividade privativa dos/as médicos/as, além da aplicação de anestesia geral. “Considero perfeitamente coerente os vetos da presidenta Dilma,tendo em vista seu conhecimento e sensibilidade quanto aos argumentos das demais categorias profissionais e coerentes com a demanda pelos vetos feita pela presidenta do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Rosário, até porque não tem cabimento dentro de uma perspectiva de trabalho de equipe multidisciplinar, um profissional ignorar solenemente o legítimo exercício das demais profissões”, opina a coordenadora do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis), Roseni Pinheiro.
A presidenta também vetou o Inciso 1 do Artigo 4º, considerado polêmico, e que motivou protestos de diversas categorias, como fisioterapeutas, enfermeiros/as e psicólogos/as, ao atribuir exclusivamente aos/às médicos/as a formulação de diagnóstico de doenças. A classe médica considera que esse ponto era a essência da lei. Para as demais categorias, o trecho representava um retrocesso à saúde. Segundo o Planalto, esse inciso impediria a continuidade de inúmeros programas do SUS que funcionam a partir da atuação integrada dos/as profissionais de saúde, contando, inclusive, com a realização do diagnóstico por profissionais de outras áreas que não a médica.
Segundo a assessoria de imprensa da Presidência da República, os ministérios da Saúde, do Planejamento, da Fazenda e a Secretaria-Geral da Presidência se manifestaram pelos vetos. A lei entra em vigor 60 dias após a publicação da edição do Diário Oficial da União, na edição do dia 11 de julho.
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