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A importância do diálogo: os desafios das Racionalidades Médicas para a clínica e a promoção da saúde – Entrevista com Madel T. Luz

madel_x_semO BoletIN entrevistou, com exclusividade, a Professora  Madel Therezinha Luz (IMS/UERJ). Socióloga, pesquisadora, autora entre muitos outros títulos de Natural, racional, social (ed. Campus), A arte de curar versus a ciência das doenças (ed. Dynamis) e O lugar da mulher (ed. Paz e Terra), a dra. Madel Luz fundou o grupo Racionalidades Médicas, nos anos 1990, abrangendo comparações de sistemas médicos complexos (Medicina Ocidental ou Biomedicina, Homeopatia, Medicina Tradicional Chinesa, Ayurveda) tanto em nível teórico (ciências humanas) como prático (médico terapêutico, ou diagnóstico).

Vale lembrar que o Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis) surgiu como um desdobramento das linhas de pesquisa do grupo, em 2000. Ela estará no XI Seminário do Projeto Integralidade, coordenando a mesa “Racionalidades médicas e práticas de saúde: desafios para a clínica e a promoção em saúde na integralidade do cuidado”, que será realizada em 13 de setembro, das 13h30 às 17h. Nessa mesa redonda, participam também Gustavo Couto (Secretário Municipal de Saúde de Recife), Alda Lacerda (EPSJV/Fiocruz), Leandro David (Ucis Guilherme Abath/SMS-Recife) e Cesar Favoreto (FM-UERJ).

“Acredito que a Roseni (Pinheiro, coordenadora do Lappis e idealizadora do Seminário) é uma pessoa muito corajosa na abordagem prática dos campos dos saberes, que leva em consideração a questão do que é produzido dentro da universidade e, ao mesmo tempo, o que pode ser ouvido do cidadão e dos usuários e como isso pode ser colocado na micropolítica através do contato com gestores, gerentes, profissionais. Isso é um avanço dentro da Saúde Coletiva”, disse. “Quando percebemos que é possível deslocar esse grupo, e produzir frutos em outros lugares, estamos fazendo avançar um modelo inovador. O grupo Integralidade foi um desdobramento, um broto do grupo Racionalidades Médicas. Broto que virou uma arvore, e agora está virando um bosque, uma floresta…”

BoletIN: Quais são os desafios que as racionalidades médicas têm colocado para a clínica biomédica, tradicional?

Madel T. Luz: Quando pensamos nesses desafios, entramos em dois caminhos: na questão da eficácia do procedimento e na questão do cuidado. As distintas racionalidades médicas (Medicina Chinesa, Ayurveda, Atroposófica, Homeopatia…). Desafios importantes são aqueles relativos a conseguir dar conta das questões que a demanda atual da clínica coloca. Essas questões envolvem a relação paciente-terapeuta, ou médico-paciente e de como isso acontece, se leva ou não a um resultado. Em primeiro lugar, não existe mais esse encontro paciente-médico. Além disso, as demandas que são colocadas em relação ao cuidado hoje são relativas a um conjunto de transtornos, disfunções que estão ligadas às situações atuais da população, seja relativa ao trabalho, às condições de vida, à idade, ao envelhecimento, à alimentação. Esse tipo de adoecimento é, por ele mesmo, desafiador.

Tenho a impressão que a clínica tradicional não responde a essas questões, até pela ideia de que as outras racionalidades respondem: o encontro entre paciente e terapeuta/médico, o olhar para o paciente como um sujeito e, portanto, ter como objetivo da sua intervenção o cuidado daquela pessoa, a questão da integralidade, no sentido de ver todas as dimensões do sujeito, o contexto dele, a situação que ele vive, e não apenas uma patologia ou uma lesão. Acredito que o primeiro desafio seja esse: que questões essas racionalidades, que vêem todas essas dimensões no cuidado do ser humano, são colocadas para a biomedicina, para a clínica tradicional. Como elas não se colocam essas questões, estão ficando em um nível cada vez mais difícil de responder às questões de saúde da população como um todo.

BoletIN: E os desafios que se colocam especificamente para as Racionalidades Médicas?

Madel: Coloca-se, primeiramente, o desafio da legitimação institucional. Podemos argumentar que já existe o PNI, que já tem um plano nacional de integração das práticas complementares, que tem as experiências de integração de práticas. Mas há um problema que se apresenta no plano paradigmático: a inserção dentro do SUS de aspectos fragmentados dessas racionalidades médicas, como a Acupuntura sob uma visão extremamente reducionista, massagens, homeopatia de “15 minutos”, esse tipo de absorção pelo sistema dessas racionalidades, sem oferecer a elas a chance de existirem realmente no seu paradigma, é uma forma de fagocitação dessas práticas. O sistema, por não ter resposta terapêutica para as questões que se colocam, se apropria quase ortopedicamente, e coloca fragmentos de práticas de outras racionalidades. Como resolveremos essa questão da legitimação da totalidade paradigmática? É possível a convivência dos dois paradigmas? A convivência justaposta lado a lado é possível, sim. Agora, será possível uma interlocução paradigmática? Ainda não é possível porque o paradigma hegemônico se considera verdadeiro. Se, em dois sistemas de conhecimento, um se considera verdadeiro, não há espaço para o diálogo com o outro, ou há?

As racionalidades de paradigma holístico e vitalista tem pela frente o grande desafio de co-habitarem/partilharem as suas distintas perspectivas de visão e diagnose, de tratamento do ser humano. Podem se afirmar como saberes que se dirigem a um ser vivo como um todo, e que estão centradas na ideia de vida. A saúde é uma consequência da vida, não a ausência de doença ou determinados parâmetros de normalidade. É necessário que esses paradigmas comecem também uma forma de diálogo. As pessoas já fazem isso: buscam alimentação saudável, praticam yoga, tai-chi-chuan, se tratam com homeopatia…fazem um microsincretismo vitalista, mas que não “ofende”. O paradigma é o mesmo. Essa circulação também já existe entre os profissionais: um homeopata que faz acupuntura, um acupunturista que trabalha com yoga. Vejo isso bastante entre os profissionais. Acredito que o caminho seja esse: as racionalidades se identificando como saberes que partilham do mesmo paradigma, e de que forma isso pode vir a ser uma proposta que acrescente inclusive a biomedicina, expandindo esses paradigmas. Por que criar dualidades o tempo inteiro?

BoletIN: Charles Dalcanale Tesser, em seu artigo, “Práticas complementares, racionalidades médicas e promoção da saúde: contribuições poucos exploradas” (Cad. De Saúde Pública) diz que as “dificuldades (…) afligem mais os profissionais de saúde, cientistas e intelectuais do que os usuários e doentes, os quais, em geral, transitam sincreticamente pelos saberes, práticas, concepções e valores das várias medicinas e técnicas sem problemas relevantes, percorrendo diferentes itinerários terapêuticos e, porque não dizer, promotores de saúde, quando a eles têm acesso”. Há uma maior resistência dos profissionais ou dos gestores?

Madel: Não acredito que a rsistência parta especificamente dos profissionais. Acontece no campo da gestão e nas corporações. Não é “este” terapeuta ou “aquele” profissional, é a ordem das corporações e a mentalidade dos gestores em relação à política, que não é isenta de preconceitos. Essa não isenção é muito grave, pois um gestor se vê no direito de impedir que uma prática, que é parte da política de saúde, seja implementada da maneira como foi aceita dentro do sistema. Um gestor pode decidir que só médico pode praticar acupuntura nos serviços, quando isso é multiprofissional, pela decisão normativa. Isso tem acontecido com bastante freqüência.

É uma questão de diálogo que se torna impossível devido à natureza corporativa dos saberes e à natureza partidária de certos políticos/gestores na área da saúde. Uma vez tornando-se evidente essas questões para a sociedade, há mais possibilidade de ser resolvidas através do diálogo. As questões de separação entre esse e aquele saber, este é verdadeiro, aquele não é, não passa na cabeça do usuário. Os usuários vão onde acreditam que vai fazer bem a eles. Não importa se é no terreiro de Umbanda, se é no serviço de saúde mais tecnológico possível, ou se vai para um doutor humanista, ou homeopata. Mas não vamos ser partidários: um médico de formação também pode ser um grande humanista. Isso depende dos contextos de dialogia: se esses contextos forem abertos, é possível superar uma série de problemas que nem se colocam no nível dos usuários.

BoletIN: Como apontar caminhos para esse diálogo?

Madel: Acredito que existe uma série de impedimentos para que as decisões que já foram tomadas no plano político fluam nos serviços e produzam resultados em relação à saúde da população. Então, qual seria uma dessas “vias de desbloqueamento”? Penso que seja através do ensino e da formação de novos profissionais – não apenas nas faculdades de Medicina, mas também de Fisioterapia, Nutrição…porque todos dos subcampos das biociências querem seguir o modelo rígido da biomedicina.

Ao abrir formas novas de educação desses novos profissionais, esses podem chegar a ter uma visão mais interdisciplinar, ou pelo menos multidisciplinar. Isso atenderia inclusive a necessidades pessoais de formação. Existem pessoas com vocação terapêutica, que se desiludem com a faculdade porque não veem nada que os encaminhem para o atendimento e o cuidado do outro, durante o curso. Gera uma situação de enorme frustração.  O ideal seria que o ensino favorecesse o contato, desde o início, com a população, mas sem medo. Quando chega ao quarto ou quinto ano (da faculdade de Medicina) o estudante tem medo do que vai encontrar, medo do paciente enquanto doença que ele tem que cuidar. É preciso perceber isso, que esse aluno pode perder o medo se estiver desde o início em contato com os usuários. Eles também devem observar a vida dessas pessoas em sua totalidade.

A clínica tradicional já fez isso: já existiram médicos de família antes do plano do PSF. Os médicos tradicionais, até o fim da primeira metade do século XX, eram DA família, não DE família. Seguiam uma família inteira, todos os membros, durante décadas. Era um setor da classe média, a burguesia já procurava por médicos especializados. O serviço público diferenciado, de emergência, continua do mesmo jeito. A chamada “crise da saúde”, com os serviços emergenciais entupidos, existe há pelo menos um século. Como reverter essa situação? Acho que através de um outro ensino também, que não seja voltado apenas para a questão da especialidade técnica. Aí temos um grande problema: não vejo, a curto ou médio prazo, a biociência cedendo espaço para qualquer outra alternativa. Mas, a longo prazo, o espaço terá de ser aberto. Ainda existe um terceiro caminho: a biomedicina virar um “repositor de peças”. Como não pode curar, não pode tratar, troca “peças” das pessoas quando as “antigas” deterioram, prometendo vida longa com as novas peças. Mas estaremos ainda falando de seres humanos?

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