A entrevista do mês do portal da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde é com a pesquisadora do Nupes/ DAPS/ Ensp/ Fiocruz, Ligia Giovanella. Nesta edição, o BoletIN reproduz a entrevista com Lígia, que atualmente é docente permanente do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da ENSP e realiza estágio sênior na Hochschule Fulda, Fachbereich Pflege und Gesundheit (Departamento de Ciências da Saúde e da Enfermagem), Alemanha, com apoio da Capes. Confira:
*Publicado originalmente no portal da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde
Durante o Abrascão 2012 você ministrou a palestra sobre Atenção Primária e Reformas de Saúde na Europa em Tempos de Crise. Como muitos integrantes da Rede APS não puderam participar quais foram os principais pontos de sua apresentação?
A palestra apresentou resultados preliminares da pesquisa que estou realizando em parceria com o professor Klaus Stegmüller da Universidade de Fulda. A pesquisa tem por objetivo analisar políticas e sistemas de saúde em perspectiva comparada, com foco nos processos de reforma da APS identificando tendências dos processos contemporâneos de reformas em saúde em contexto de forte pressão financeira em países europeus que alcançaram a universalidade, tomando três casos exemplares: Alemanha, Reino Unido (Inglaterra) e Espanha.
Iniciei descrevendo o contexto de grave crise financeira e econômica com o qual se defrontam os Estados nacionais da União Europeia. Em seguida trabalhei a caracterização dos sistemas de saúde e da APS nos países. E ao final discuti as reformas e seus possíveis impactos e consequências para a universalidade. o contexto é de importante crise econômica. Com a crise bancária, governos europeus socorreram seu sistema financeiro com fundos públicos, aumentando a dívida pública, ao mesmo tempo em que ocorreram elevação e diferenciação dos juros pagos pelos diferentes Estados nacionais europeus. Com o aumento dos juros, estas dívidas tornaram-se impagáveis. Na rolagem das dívidas de Estados em dificuldades financeiras, papéis de créditos conseguidos com juros baixos passaram a ser prolongados com juros elevados produzindo uma crise de endividamento público em diversos estados nacionais, como Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha. Todavia é necessário reconhecer que o aumento da dívida pública não é a causa da crise econômica. Suas causas são mais profundas relacionadas à desregulamentação do setor financeiro e de uma liberação das forças de mercado sem precedentes nos anos 1990.
A incapacidade de refinanciamento de suas dívidas obrigou Grécia, Irlanda e Portugal a recorrer a um fundo de estabilização da União Europeia e a se submeter a um programa de ajuste com metas drásticas de redução do déficit público da chamada Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI). As medidas restritivas e a inexistência de um programa de incentivos ao crescimento econômico têm aprofundado a recessão dessas economias em um círculo vicioso. No acordo com a Troika – Memorandum de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Econômica – os países se comprometem a um programa de austeridade e ajuste para “consolidar” seus orçamentos e reduzir o déficit público e a dívida pública – levando a cortes orçamentários sem precedentes, e outras medidas de reestruturação do sistema financeiro, tributário, arrecadação de impostos etc.
Estes cortes orçamentários atingem os sistemas de saúde e a atenção primária, contudo de forma muito distinta entre os três países analisados. Inglaterra, Espanha e Alemanha, alcançaram a universalidade com sistemas de saúde com diferente organização. A Inglaterra é o exemplo fundante de serviço nacional de saúde (NHS) de acesso universal e gratuito para todos os cidadãos e residentes com financiamento fiscal (83% dos gastos em saúde são públicos e correspondem a 8% do PIB). Tem atenção primária tradicionalmente forte com obrigatoriedade de registro dos cidadãos junto a um consultório de médico generalista (general practitioners-GP) com função de porta de entrada e filtro (gatekeeper) para acesso ao especialista, situado em segundo nível, no ambulatório de hospitais, quase todos públicos.
Na Alemanha a proteção social à saúde é garantida pelo seguro social de doença (Gesetzliche Krankenversicherung – GKV) de afiliação compulsória, que cobre 90% da população, e é financiado solidária e paritariamente por trabalhadores e empregadores, mediante taxas de contribuições sociais proporcionais aos salários (taxa atual de 15,5% sendo 7,3% pagos pelo empregador e 8,2% pelo trabalhador). O financiamento é também predominantemente público: 77% dos gastos em saúde são públicos e correspondem a 8,9% do PIB. Starfield classifica a atenção primária na Alemanha como fraca, pois, ainda que haja tradição na atenção por médicos generalistas (Hausarzt) (que correspondem a cerca da metade do total de médicos do setor ambulatorial) e mais da metade dos alemães refiram ter um Hausarzt, este profissional não exerce a função de gatekeeper. O segurado, a cada atendimento, pode escolher qualquer médico credenciado em seu consultório particular, não sendo obrigatório o encaminhamento pelo generalista para consulta com especialistas.
A Espanha tem um sistema nacional de saúde (SNS) de acesso universal e gratuito com financiamento fiscal (74% dos gastos em saúde são públicos e correspondem a 7,1% do PIB). Diferente do NHS inglês, o SNS é descentralizado para as 17 Comunidades Autônomas (CCAA, estados) e os serviços sanitários das CCAA estão organizados territorialmente em Áreas e Zonas de Saúde. Nestas zonas, se localizam os centros de saúde com equipes multiprofissionais constituídas por médicos de família e comunidade, pediatras e enfermeiros; profissionais assalariados em tempo integral, com função de porta de entrada e filtro para a atenção especializada. Os usuários escolhem um médico de família e comunidade do Centro de Saúde de sua zona e registram-se na sua lista.Estas diferentes conformações dos sistemas de saúde condicionam as medidas restritivas frente à crise. Além do mais, os três países, estão submetidos a distintas pressões financeiras. Espanha em recessão e juros altos (6,5%) introduziu medidas restritivas e cortes de gastos em saúde no valor de 7 bilhões de euros. Alemanha com juros baixos e baixo nível de desemprego apresentou em 2012 superávits do seguro social e aboliu a taxa de co-pagamento de 10 Euros da atenção ambulatorial. Na Inglaterra, o governo liberal conservador aprovou importante reforma do NHS que prevê cortes de 20 bilhões de libras até 2015 com redução da estrutura administrativa com abolição dos primary care trusts e autoridades estratégicas em saúde e reorganização dos general practitioners em clinical comissionig groups (os CCGs) responsáveis pelo planejamento e compra dos serviços secundários com diversificação da prestação assistencial e privatização de serviços.
Na presença de governos conservadores-liberais nos três países, tem se intensificado a introdução de mecanismos de mercado e a competição nos sistemas públicos como principal estratégia alardeada na busca de maior eficiência, o que é bastante questionável. O exemplo dos EUA traz evidências fortes de como um sistema de mercado incorre em mais altos gastos e produz desigualdades.
Com os programas de ajuste, a universalidade, nos 3 países ainda que permaneça quase inalterada, é tensionada com restrições de acesso a não nacionais, elevação de copagamentos e ampliação das brechas de equidade.
Com a crise europeia quais são as principais dificuldades da Atenção Primária?
As dificuldades são diferenciadas a depender da pressão da crise e da estruturação dos sistemas públicos de saúde. Sem dúvida é na Espanha que se observam os efeitos deletérios mais imediatos. O Real Decreto Ley 16/2012, de 20 de abril, estabeleceu cortes no orçamento do SNS. Introduziu co-pagamentos de medicamentos para aposentados, até então isentos, e introduziu co-pagamento para transporte sanitário, entre outros, além de excluir medicamentos para sintomas menores como anti-térmicos, o que certamente afeta a continuidade dos tratamentos e a resolutividade da APS. Um levantamento da sociedade espanhola de médicos de família e comunidade identificou em diversas comunidades autônomas a redução de pessoal, com não preenchimento de postos vacantes, fechamento de unidades (principalmente os consultórios isolados), redução de horários de funcionamento, descontinuidades do abastecimento de insumos; redução de salários. As medidas privatizantes dos governos conservadores das CCAA atingem também em parte a APS: controle dos centros de saúde (CS) pelas empresas privadas que gerenciam hospitais (Valencia, Castilla-La Mancha); ou, por exemplo, a recente proposta de transferências de 10% dos CS (40) a entidades associativas, ou cooperativas de profissionais de saúde em Madri. Na Inglaterra, os cortes orçamentários do Health and Social Care Act 2012 afetam a atenção primária ao reduzir drasticamente sua estrutura gerencial, terceiriza a função de comissionamento e obrigam a que os próprios médicos de atenção primária racionalizem (ou racionem?) a atenção prestada. A reforma pressiona GPs, afetando suas decisões clínicas pois estas mais e mais passam a ser condicionadas por restrições financeiras.
As medidas recentes dos governos conservadores têm como objetivo maior cortar gastos e quando muito, apenas secundariamente, o alcance de maior eficiência. Assim as reconhecidas vantagens de maior eficiência e qualidade da APS são pouco consideradas nestes programas de ajuste. É interessante que no caso de Portugal o Memorandum do acordo com a Troika mencione especificamente a importância em ampliar as Unidades de Saúde Familiar, dadas as evidências de maior qualidade e eficiência de seu modelo de atenção; contudo ainda que mencionada, esta medida não foi implementada.
As medidas restritivas dos programas de ajuste, sem dúvida afetam o acesso e aumentam iniquidades, mas devemos lembrar que são países com sistemas de saúde universais, predominantemente públicos, de qualidade, com elevados gastos em saúde e indicadores excelentes: mortalidade infantil menor de 4 (6 na Inglaterra) esperança de vida maior de 80 anos.
Como integrante do comitê coordenador e condutora da reunião da Rede que teve como pauta uma agenda estratégica de trabalho o que você julga importante fazer para fortalecer a Rede e ampliar as pesquisas em APS?
A reunião foi bastante produtiva na construção de uma agenda estratégica de trabalho para a Rede de Pesquisa em APS. Destaco algumas das iniciativas que discutimos. Em curto prazo há que se investir em um trabalho cooperativo entre as instituições integrantes da Rede de Pesquisa em APS, que participaram do campo, para análise aprofundada e difusão dos resultados dos inquéritos PMAQ-AB, em parceria do DAB. A realização do campo do PMAQ-AB foi uma experiência de parceria entre a Rede e o DAB, de cooperação entre pesquisadores e gestores da política de AB, muito exitosa.
Em médio prazo deveríamos trabalhar a construção de uma agenda estratégica de pesquisa, específica em APS, complementando a agenda de pesquisa nacional, com ampla participação por meio de diversas modalidades de consulta e fóruns. E desenvolver estratégias de advocacy para ampliar o financiamento da pesquisa em APS, que deve incluir diversas modalidades e âmbitos, desde o incentivo à pesquisa em serviço realizada pelos próprios profissionais da APS até a pesquisa realizada em institutos e universidades. Ainda que a APS seja frequentemente reiterada como prioridade, o financiamento para a pesquisa em APS é irrisório comparativamente com outras áreas da saúde. Devemos pleitear junto ao DAB, SAS, SCTIE, DECIT o lançamento de editais específicos de financiamento da pesquisa em APS. E, como proposto na reunião, advogar também pela realização de um próximo edital PPSUS com foco da APS nas redes regionalizadas; e de um grande estudo longitudinal em APS que permita apresentar evidências robustas sobre resultados das modalidades de atenção em APS.
No dia 16, você, em companhia com outros autores, lançou o livro Políticas e Sistema de Saúde no Brasil que faz uma análise crítica sobre o sistema de saúde brasileiro. Como é ser militante na defesa do direito universal à saúde no Brasil?
Ser militante na defesa do direito universal à saúde no Brasil é uma tarefa para a vida toda. Cada qual pode contribuir desde seu campo de atuação. A organização do livro Políticas e Sistema de Saúde no Brasil, agora em segunda edição revista e ampliada, em parceria com Sarah Escorel, Lenaura Lobato José Noronha e Antonio Ivo de Carvalho, em co-edição Cebes e Editora Fiocruz é uma das nossas contribuições. É um livro de referência com abordagem didática dirigido a estudantes de graduação e pós-graduação em que a defesa da garantia do direito universal à saúde e da redução das profundas desigualdades sociais em saúde em nosso país, orienta a abordagem dos diversos capítulos. Assim buscamos em conjunto com nossos mais de 50 autores contribuir para a formação de uma consciência crítica, militante na defesa do direito universal à saúde.
Como é a experiência de ser uma pesquisadora brasileira na Alemanha?
É sempre uma experiência desafiadora pelas diferenças culturais, ademais do idioma. No contexto atual tem sido muito interessante poder acompanhar de perto o desenrolar dos debates sobre a crise econômica atual e também os movimentos sociais que se organizam na luta pela preservação de seus direitos já garantidos.
Você é referência intelectual para a maioria dos profissionais que trabalham e estudam a atenção primária no Brasil. Quais os principais desafios já vividos pela área e quais os maiores avanços da saúde brasileira?
Antes de tudo agradeço o cumprimento! A criação do SUS como dizia Arouca faz parte de nosso processo civilizatório, é uma conquista da nossa democratização. Com o SUS, ampliamos acesso e garantimos direitos a cidadãos até então excluídos, contudo falta muito para tornar realidade um sistema público universal de qualidade. O financiamento público em saúde no Brasil é muito baixo. Corresponde a menos da metade dos gastos totais em saúde no país e a apenas 3,7% do PIB. Sistemas europeus que alcançaram a universalidade tem gastos predominantemente públicos, como visto nos exemplos de nossa pesquisa, que correspondem a 7 ou 8% de seu PIB. Nos falta, portanto, no mínimo dobrar os nossos gastos públicos em saúde, a riqueza de nosso país nos permite.
Na atenção primária à saúde tivemos avanços enormes nos últimos anos com a implementação sustentada da Estratégia Saúde da Família, mas a formação de médicos generalistas, médicos de atenção primária, é incipiente. Na Espanha, por exemplo, a formação de médicos de família e comunidade antecedeu a reforma de APS e foi por eles impulsionada. É necessário acelerar e ampliar as diversas iniciativas de formação em curso. Estão sendo criadas novas faculdades públicas de medicina, por exemplo, na Bahia. Seria necessário aproveitar esta oportunidade para criar departamentos fortes de medicina de família e comunidade nestas faculdades e direcioná-las à formação de médicos generalistas. Intensificar os intercâmbios com os médicos generalistas de Portugal e Espanha poderia contribuir para a valorização desta carreira. A orientação comunitária da ESF é uma característica muito positiva que deve também ser incentivada com a renovação periódica do diagnóstico comunitário e do desenvolvimento participativo de estratégias de intervenção, com ampliação da formação dos ACS como agentes de saúde coletiva e o estabelecimento de parcerias efetivas com outros setores de políticas públicas em cada território. Sem deixar de mencionar os desafios que permanecem na contratação dos prestadores privados, na construção das redes regionalizadas e do acesso aos serviços secundários onde o predomínio de prestação privada deixa muitos gestores municipais à mercê, reféns, de um único prestador que exige maiores preços e ademais cobra por fora, como denunciou uma representante dos usuários na abertura do congresso da Abrasco. Mas como digo sempre para meus alunos, a luta contra as desigualdades e injustiça social é secular. Mobilizou trabalhadores nos séculos XIX e XX que conquistaram direitos, e mostraram possibilidades de sociedades menos injustas. Hoje os movimentos sociais europeus se mobilizam por sua preservação, e, nós na América do Sul, em contexto democrático e de governos um pouco mais à esquerda avançamos lentamente na redução da pobreza e exclusão.
Fonte: Portal da Rede de Pesquisa em Atenção primária à Saúde: http://www.rededepesquisaaps.org.br/
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