XI Cidadania do cuidado

Gestão, institucionalização e promoção da saúde: os desafios para as racionalidades médicas

IMG_2006Discutir a legitimidade de diferentes saberes e práticas, as disputas de poder que geram entraves, entender a participação de diversos atores envolvidos (gestores, trabalhadores em saúde, movimentos populares, lideranças comunitárias), garantir o acesso e o direito democrático de escolha dos usuários na dimensão coletiva. Esses foram alguns dos assuntos abordados na mesa "Racionalidades médicas e práticas de saúde: desafios para a clínica e a promoção em saúde na integralidade do cuidado", a última apresentada no XI Seminário do Projeto Integralidade, coordenada por Madel Therezinha Luz (IMS/Uerj).  

IMG_1980O secretário municipal de Saúde de Recife Gustavo Couto comentou as experiências práticas que a Prefeitura Municipal tem incentivado – em especial a UCIS Guilherme Abath sob a ótica da Integralidade – destacando a importância de diálogo com as práticas integrativas e o papel do Estado na questão do direito à saúde. "O Estado deve intervir com a responsabilidade social, assumindo a questão de ser provedor, administrador, e com isso prestar a atenção integral no sistema. O desafio é fazer isso dentro da realidade atual do país". Couto também falou sobre a importância da formação para a saúde. "Temos que formar sujeitos conscientes de seus papéis políticos".  

O secretário, que vê a experiência do Programa de Saúde da Família como uma oportunidade de acesso, acredita na reconstrução do processo de trabalho para influenciar nas práticas. Apesar das dificuldades formativas e tecnológicas, vê as redes integradas de saúde como uma possível saída para o sistema. "Saímos de 9.000 para 900.000 mil pessoas cobertas pelo sistema. Esse é um resultado concreto das ações". No entanto, ainda há questões a serem resolvidas: ampliar o acolhimento, a articulação de responsabilidades entre profissionais e sistema, educação permanente e a criação de fórum de trabalhadores e gestores. "Apesar de estar na Constituição, o Estado brasileiro ainda não conhece a materialidade concreta do SUS como um todo. Há um longo caminho a ser percorrido".  

Partindo para o campo específico, Alda Lacerda (EPSJV/Fiocruz) levou o contexto de uma racionalidade no processo de institucionalização: a homeopatia, praticada por médicos e leigos. "Para fortalecer a integralidade do cuidado, alguns desafios se fazem presentes quando se pensa na perspectiva da clínica e da promoção da saúde", disse.  

IMG_2004Para ela, a primeira questão  é trabalhar com uma concepção ampliada de saúde, doença e cuidado; a segunda, abrir espaço para legitimar outras práticas ou sistemas médicos complexos. "De um lado temos a biomedicina, e do outro, medicina chinesa e ayurvédica que se constituem como sistemas tradicionais, enquanto práticas como a homeopatia são consideradas alternativas ou complementares – termo carregado de estigmas. É preciso entender essas práticas como perspectivas de terapias não-convencionais, mas que priorizam a escuta, o vínculo, o acolhimento, ou seja, apontam para perspectivas de práticas de integralidade voltadas para o sujeito. Nessa perspectiva, a homeopatia pode ser considerada uma "medicina do sujeito", onde os processos e contextos do adoecimento são uma questão central".

A questão da implementação vem desde a reforma sanitária e a criação do SUS. O relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde preconiza a introdução de práticas alternativas à assistência nos serviços de saúde, e reforça que os currículos de cursos de saúde devem incluir o conhecimento de saberes sobre essas práticas. Em 2006, a Portaria 971/2006 instituiu a Política Nacional de Práticas Alternativas e Complementares. "Apesar desses avanços, ainda temos muito que caminhar, vide a oferta que temos desses serviços de saúde. Recentemente, em um concurso, havia uma vaga para homeopatia e outra para acupuntura, contra 300 e 400 vagas para cargos de atividades ligados à Biomedicina".  

Alda Lacerda acredita que a institucionalização da homeopatia passa pelo conceito de integralidade, um dos princípios fundadores do SUS. "Homeopatia entra no campo da promoção como prevenção de agravos e recuperação da saúde. É fundamentada no vitalismo, dimensão coletiva do cuidado, percepção social, mudança diante da vida. É uma estratégia de atenção e cuidado dentro do modelo do sistema de saúde, com o sujeito no centro do paradigma da atenção".  

A disputa entre homeopatas leigos e médicos que praticam essa racionalidade e o direito democrático de escolha dos usuários também entraram na pauta da exposição. "A Homeopatia tem uma história cultural que transcende esse debate (médicos e leigos), e ao mesmo tempo, temos que pensar no potencial de cura e de cuidado, a dimensão simbólica da saúde e do adoecer humano. Não podemos negar que é uma prática cultural e socialmente construída e que, principalmente em um tempo em que não havia médicos especializados, a homeopatia era ministrada por leigos nos centros espíritas e serviços populares", disse. "O debate tem que avançar, sair da visão do julgamento, da disputa entre diferentes interesses, e agregar forças em prol da institucionalização, da garantia de acesso a esses usuários, do respeito às diferentes racionalidades médicas. É importante entender que ambas as práticas, praticadas por médicos ou leigos, se processam e se organizam de formas distintas, não dá para enquadrar como uma única forma".  

O papel da clínica e da academia 

Médico e sanitarista, com formação em Medicina Antroposófica, Leandro David (UCIS Gulherme Abath/Recife) falou sob a perspectiva da trajetória do Núcleo de Apoio em Práticas Integrativas (NAPI). Com uma equipe de 13 profissionais, formados em diversas abordagens (Acupuntura, Tai-Chi-Chuan, Fitoterapia, Medicina Antoposófica, entre outras), o NAPI foi criado para apoiar equipes de Saúde da Família de dois distritos sanitários do Recife.  

IMG_2000"O NAPI tem se apresentado como um novo lugar para as PIC, em que estas são constantemente provocadas a se colocarem como elemento vivo e dinâmico de uma rede de atenção à saúde", contou. "No apoio matricial, as potencialidades das PIC precisam ser ofertadas, dialogadas e reelaboradas, não no sentido de individualizar ou tornar utilitarista um cuidado ampliado – como usualmente elas se apresentam nas instituições privadas – mas de mostrar como suas cosmovisões e recursos terapêuticos, quando em contato com as singularidades de usuários e profissionais, ajudam a despertar potências de vínculo e de afeto, que podem transformar redes de assistência em redes de solidariedade e reconhecimento comunitário". 

O médico realizou uma breve explicação sobre a Medicina Antroposófica ("medicina com uma visão ampliada do conhecimento do ser humano") e expôs alguns desafios para os profissionais da saúde para a área. "Como fazer com que um profissional, que ainda não se propõe a trabalhar nessa área e nem tem essa formação, possa trabalhar na perspectiva de apoio? Não é simplesmente 'empurrar' o usuário para ser assistido por um homeopata, um antroposófico. A questão é se essa equipe vai estar preparada. Mesmo não tendo a formação específica da área, a equipe pode estar aberta para receber esse tipo de apoio".  

David informou que essa demanda está sendo solucionada no NAPI com oficinas de trabalho e treinamento de profissionais. "A partir dessa experiência, pudemos verificar quais são as demandas dos pacientes e discutir que mudanças nos serviços são possíveis. Às vezes, não é a medicina antroposófica que vai trazer uma possibilidade de eficácia para uma determinada situação, pode ser outra racionalidade. A prática é apenas um elemento dentro dessa rede, constrói novos conhecimentos". Para ele, o reforço do profissional de saúde contribui para que as práticas ditas populares (como os chás, por exemplo) recebam uma nova dimensão para os usuários. "Estabelece um vinculo de reconhecimento daquele saber". 

IMG_2003Coube a Cesar Favoretto, professor da Faculdade de Medicina da Uerj, levar um olhar da academia para o tema das Racionalidades Médicas. "Enquanto professor, procuro fazer um papel de mediador, dar conselhos, propor caminhos. E, enquanto médico, não me sinto dono do projeto terapêutico, sou um mediador do cuidado. Assim, tenho que estar aberto aos vários itinerários terapêuticos".  

Favoretto também abordou o papel do mercado para os gestores, equipes e profissionais de saúde. "A visão utilitarista é uma das questões centrais da medicina alopática, que engloba as outras racionalidades terapêuticas. Não podemos ver a homeopatia, por exemplo, como um produto a ser consumido, e sim na sua terapêutica. Não podemos trabalhar as terapias integrativas com uma visão totalitarista da terapêutica".  

Nesse sentido, para o professor, o resgate da produção social do processo de adoecimento é fundamental. "Devemos ter uma perspectiva holística do paciente, olhar para a história dele, a qualidade de vida. Não basta apenas implantar as terapias alternativas. É importante reconstruir as narrativas dos pacientes sobre a vida e como ela se relaciona com o mundo social. Que essa reflexão seja oferecida nos consultórios, na formação dos profissionais, nos serviços de Saúde da Família".   

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