por Alain Caillé, Christophe Fourel, Ahmet Insel, Paulo Henrique Martins, Gus Massiah, Patrick Viveret[1]
O mais surpreendente e também o mais revelador nas enormes manifestações que sacodem o Brasil e Turquia atualmente é a perplexidade dos poderes vigentes, sejam eles de direita ou de esquerda. Como admitiu Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, “o governo não entende o que está acontecendo.” Similarmente, na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan não entende ou não quer ver nas revoltas da juventude urbana, algo mais que o resultado de uma conspiração oriunda do exterior. O que está acontecendo? Para qual direção apontam esses movimentos? Para esboçar uma resposta a esta questão, é preciso conectá-los com movimentos similares que lhes precederam, explicar porque eles são pouco compreensíveis no contexto das categorias políticas herdadas e começar a identificar a perspectiva a partir da qual eles podem adquirir sentido, não apenas dentro de uma lógica de contestação e desespero, mas também como precursores de alternativas políticas desejáveis e plausíveis.
Obviamente, ainda que o contexto político, econômico e cultural seja diferente a cada momento, existe mais do que uma aparência familiar entre os movimentos dos Indignados ou Occupy Wall-Street, a primavera árabe e aqueles que se tornaram notícia no Brasil e na Turquia. Em alguns casos, o foco é mais ou menos voltado para a miséria e a degradação das condições materiais da existência, ou sobre a questão das liberdades. Mas em todos os casos, o que é denunciado e estigmatizado é a fissura cada vez mais abismal que separa os governantes e os governados, os mais ricos dos mais pobres. Esta lacuna concede à imensa maioria o sentimento de não ser compreendido e explica, reciprocamente, que aqueles que se encontram no pináculo do poder e da riqueza não entendem quase nada sobre o que de fato está acontecendo. Mais especificamente, a paixão mobilizadora que conduz às ruas, algumas vezes colocando suas vidas em risco, é um profundo sentimento de injustiça, uma cólera contra a arrogância do poder e a indignação contra uma corrupção endêmica.
Como tal, estes movimentos multiformes não são nem de direita e nem de esquerda. Eles não são partidários do liberalismo, do socialismo, do comunismo e nem do anarquismo. Mas um pouco de cada um de acordo com o momento, com certos ingredientes, igualmente, do Cristianismo ou do Islamismo, por exemplo. Isso é o que determina a sua força, mas também a sua fraqueza. Esta sua força advém do fato de que, desde o início, tal politeísmo doutrinal lhe permitiu agregar amplamente. Já a sua fraqueza, advém do fato de que, a sua indeterminação política e ideológica parece que os tornam incapazes de se organizar de maneira coerente, de acessar o poder e de se manter lá. Por isso, torna-se tentador classificar todas essas revoltas sob o rótulo comodista e supostamente infame do populismo, e assim estimar que as aspirações que elas conduzem vão se dissolver como neve ao sol, uma vez que terão que se confrontar à realidade.
Há, no entanto, uma outra forma de pensar. E de ter esperança. É apostar que esses múltiplos movimentos de indignação e fúria não apenas compartilham sentimentos negativos de frustração, mas eles são, igualmente e potencialmente, portadores, positivos, de um projeto de sociedade possível. Isso porque é cada vez mais urgente definir se realmente queremos construir uma alternativa às políticas neoliberais (ou neocomunistas como na China, por exemplo) que assolam o mundo. O que faz a força do neoliberalismo é principalmente a dispersão de seus oponentes. E não se trata de projetos relativos a um mundo que ainda não existe. Eles se apresentam sob nomes e em formas ou escalas infinitamente variadas, mas que remetem ao mundo atual em que vivemos: a defesa dos direitos humanos, do cidadão, do trabalhador, dos desempregados, das mulheres ou crianças, a economia social e solidária com todos os seus componentes: as cooperativas de produção ou de consumo, o mutualismo, o comércio justo, as moedas alternativas ou complementares, os sistemas locais de troca, as múltiplas associações comunitárias; a economia de contribuição digital (veja Linux, Wikipédia, etc.); a decadência e o pós-desenvolvimento, os movimentos slow food, slow town, slow science; a reivindicação pelo “viver bem”, a afirmação dos direitos da natureza e o louvor da Pachamama (deusa reverenciada pelos povos indígenas dos Andes), a antiglobalização, a ecologia política e a democracia radical, os indignados, Occupy Wall Street, a procura de indicadores de riqueza alternativos, os movimentos de transformação pessoal, de sobriedade voluntária, de abundância frugal, do diálogo de civilizações, das teorias do cuidado, os novos pensamentos compartilhados, etc.
O que falta em todos esses movimentos é a percepção clara do que eles têm em comum e sua possível coerência. É a partir de uma tentativa de formular e tornar visível o seu maior denominador comum que sessenta intelectuais, franceses e estrangeiros, representantes de diferentes correntes, tomaram a iniciativa de escrever um Manifesto convivialista[2]. O simples fato de que eles foram capazes de chegar a um acordo, apesar das diferenças ideológicas significativas, revela que a iniciativa, de refletir acerca de uma doutrina de fundo comum que seria compartilhável por alguns daqueles que tomaram as ruas em Istambul, Rio, Túnis, Madrid, Cairo e em outros lugares, não está necessariamente fadada ao fracasso.
Não podem ser resumidos em poucas linhas os muitos pontos de concordância, significativos, que foram encontrados. Talvez ecoando a atualidade turca e mais ainda a brasileira, seguem três idéias, que consideramos importante destacar em termos mais específicos:
1 – Se as ideologias políticas modernas herdadas – o liberalismo, o socialismo, o comunismo ou o anarquismo – se revelaram em grande parte incapazes de iluminar o futuro, é porque todas elas foram baseadas na ideia de que o principal problema da humanidade reside na escassez material e, portanto, a condição sine qua non do progresso político e da emancipação de todos é o crescimento ilimitado da prosperidade material. Mas o crescimento do PIB não está mais lá nos países desenvolvidos (e não voltará mais). Além disso, ele já está se desacelerando nos chamados países emergentes (incluindo o Brasil) e, em qualquer caso, o forte crescimento seria desastroso para a sobrevivência ecológica do planeta. Por isso, precisamos, urgentemente, começar a desenhar os contornos de uma democracia pós-croissantista, “pós-crescimentista”. Almejando uma sociedade de prosperidade, mesmo que sem crescimento.
2 -. Como vimos, as revoltas contemporâneas são, naturalmente, revoltas contra a pobreza. Mas também, e talvez principalmente, revoltas contra a injustiça e contra a corrupção. Elas envolvem e condenam o que os antigos gregos chamavam de insolência, excesso, falta de limites, o desejo de onipotência, esse desejo louco de superar os limites da cidade/humanidade, da sociabilidade comum e da decência comum. O desejo por riqueza ou poder infinito. Esta luta, potencialmente global, é contra a insolência e a esta luta devem ser concedidos meios de expressão política.
3. A expressão mais visível da insolência é a explosão desconcertante da desigualdade ao longo dos últimos quarenta anos. Dentro dos países e entre os países. De muitas maneiras, a dramática crise ecológica iminente, é uma resultante desse processo. Muito em breve, não haverá mais política econômica e social credível e audível, se ela não atacar frontalmente a insolência e não lutar resolutamente contra a injustiça e a corrupção através da implementação de uma política que seja, simultaneamente, de renda mínima – contra a abjeção da pobreza – e de riqueza máxima – contra a abjeção de extrema riqueza. Nesta luta, mesmo os ricos, aqueles que criam e se comprometem, os não rentistas, podem participar (ver, por exemplo, o recente apelo intitulado "Nós somos o 1%").
Estes princípios políticos são bastante simples de exprimir, como ficou evidenciado na redação do Manifesto convivialista e na atenção internacional que ele recebeu após o seu lançamento. O desafio principal será o de conduzir essas idéias por homens e mulheres que não se deixem cair na insolência. Mas isso não é necessariamente impossível.
[1]Todos signatários do Manifeste convivialiste.Déclaration d’interdépendance (Manifesto convivialista. Declaração de interdependência), Le Bord de l’eau, juin 2013, 40 p., 5 €. A. Caillé é diretor da Revue du MAUSS, Ch. Fourel é presidente da Associação Amigos Leitores de Altenativas Econômicas, A. Insel é professor emérito da Universidade Galatasaray (Istambul), Gus Massiah, é economista, P.H. Martins (Recife, Brasil) é presidente da ALAS (Associação latino-americana de sociologia)
[2]Manifeste convivialiste.Déclaration d’interdépendance (Manifesto convivialista. Declaração de interdependência), Le Bord de l’eau, juin 2013, 40 p., 5 €. Um resumo do manifesto está disponível em francês, inglês, espanhol, português e chinês no website www.lesconvivialistes.fr.
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