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Artigo: O que é “tratamento adequado” dos conflitos em saúde?

SUS.jpgEm artigo escrito especialmente para o BoletIN, o advogado e integrante do Lappis, Felipe Asensi, comenta a implantação do programa “SUS Mediado”, que tem como objetivo minimizar a burocracia nas demandas de saúde com a criação de mecanismos extrajudiciais para atendimentos mais rápidos. Felipe Asensi toma o programa como mote para discutir como iniciativas que vão além da judicialização têm recebido cada vez mais destaque na área da saúde e qual o papel do estado e da participação popular nesse cenário.

O que é “tratamento adequado” dos conflitos em saúde?
Por Felipe Dutra Asensi (foto)*
               
felipe_asensi.JPGO ensino do direito desenvolvido ao longo do tempo no Brasil tem como base a fetichização do Estado. Dois são os elementos que têm reforçado este fetiche: a lei e as instituições jurídicas. Nem sempre estes dois elementos caminharam juntos na história do mundo e, na história do Brasil, esta aproximação é bastante recente, tendo como marco contemporâneo a Constituição de 1988.

A própria Constituição estabelece que tudo pode ser apreciado pelo Judiciário. Disto resulta uma judicialização volumosa das demandas, inclusive as de saúde. Segundo o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a despesa total da Justiça dos estados, Federal e trabalhista, em 2010, foi de R$ 41 bilhões, e nenhum vidente brasileiro está afirmando que a judicialização tende a diminuir. Somente no âmbito das decisões em saúde, o CNJ informa que houve cerca de 300.000 julgados somente em 2011.

Por um lado, a Judicialização pode ser fundamental para aprofundar o processo de efetivação do direito à saúde. Por outro, ela pode promover um “apequenamento” da importância das demais instituições jurídicas, tais como a Defensoria Pública e o Ministério Público. O referencial estritamente processual da demanda em saúde é apenas uma faceta do espectro de estratégias que podem ser adotadas pelas instituições jurídicas em saúde.

É interessante observar como que o mundo extrajudicial tem cada vez mais recebido destaque na saúde. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por exemplo, criou o Programa “SUS Mediado”, destinado a resolver fora do mundo processual as demandas com um diálogo profundo com os gestores de saúde e os usuários do sistema. Comparando os anos de 2011 e 2012, observa-se uma redução de 30% das ações judiciais propostas pelos defensores, e cerca de 60% das demandas são resolvidas a partir da interface cotidiana com a gestão.

Mediações

Outras iniciativas também têm surgido com o objetivo de ir além da judicialização. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, desenvolveu um programa de capacitação dos conselheiros municipais de todo o Estado, que busca não somente fornecer subsídios jurídicos, mas também promover uma aproximação entre esta instituição e as instâncias participativas. O próprio CNJ também estabelece a necessidade dos magistrados aturarem de forma extrajudicial com a fiscalização in loco das unidades de saúde, diálogo com os Conselhos de Saúde etc.

Vale ressaltar que este mundo extrajudicial que se abre aos direitos já é algo muito comum em outros países ocidentais. Basta observar a força que a mediação e a arbitragem têm nos Estados Unidos, ou a autocompreensão que se tem da não interferência do Judiciário nas políticas de saúde em Portugal.

No Brasil, como o mundo extrajudicial se tornou muito mais uma estratégia política do que um resultado de práticas sociais e culturais de efetivação de direitos. Mais precisamente, a judicialização que aqui se desenvolveu expressa a centralidade do Estado nas práticas sociais de reivindicação do direito à saúde no Brasil. A cultura jurídica que se perpetua nas faculdades de direito também propaga esta estatalidade e, principalmente, esta judicialidade.

Não é por acaso que, quando se discute mediação no Brasil, faz-se sob os olhos das instituições jurídicas estatais, e não de forma societária. Isto é, quando se pensa o mundo extrajudicial, ainda assim há o referencial das instituições estatais liderando esta estratégia, de modo que não seja uma produção societária endógena de resolução de conflitos. A cultura política brasileira de reivindicação dos direitos tem em seu DNA um forte componente estatal. Conforme afirma Justiniano José da Rocha, um grande pensador do império brasileiro, “tudo partiu do governo, tudo ao governo se ligou, o governo foi tudo, e tanto que hoje não há Brasileiro que mil vezes por dia não manifeste a convicção de que a sociedade está inerte e morta, de que só o governo vive”.

No cenário contemporâneo, o mundo extrajudicial tem sido, inclusive, uma política desenvolvida e liderada pelo mundo judicial. A Resolução nº 125 do CNJ, de 29 de novembro de 2010, estabelece uma “política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”. Esta Resolução busca estabelecer uma adequação no tratamento dos “serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação”. Coube aos órgãos judiciários oferecer a estratégia consensual da mediação.

A Resolução tem um aspecto bastante positivo: busca adequar os meios aos fins. Porém, ainda reproduz a centralidade do Estado no desenvolvimento de estratégias de efetivação de direitos, inclusive da saúde. Em diversos países, a mediação é uma estratégia nitidamente extrajudicial que é desenvolvida endogenamente pelos atores sociais em suas práticas cotidianas. No Brasil, a mediação recebeu contornos estatais e, num hibridismo radical (e paradoxal), é desenvolvida pelas próprias instituições estatais.

O contexto brasileiro

Não quero dizer, de forma alguma, que o desenvolvimento do mundo extrajudicial é algo negativo em saúde, tampouco que as instituições jurídicas são prejudiciais. Pelo contrário, o mundo extrajudicial pode ampliar muito a sua efetivação, além de permitir maior criatividade às instituições no desenvolvimento de estratégias de efetivação deste direito. Porém, o mundo extrajudicial tal como se configurou no contexto brasileiro pode contribuir para a reprodução histórica da centralidade do Estado na saúde.

As pesquisas sobre participação social em saúde têm se debruçado sobre diversos desafios, tais como o conhecimento técnico dos conselheiros, a cooptação pelo governo etc. Porém, talvez seja o caso de pensar até que ponto a proeminência das instituições jurídicas, a despeito de se apresentar de forma bastante positiva na efetivação do direito à saúde, pode contribuir para uma atrofia dos Conselhos e Conferências no Brasil. Talvez se trate de uma consequência não premeditada da ação. Mais ainda: como pensar o “tratamento adequado de conflitos em saúde” quando as redes de solidariedade e entreajuda são submetidas cotidianamente à influência da atuação estatal?

Adequação não pode ser sinônimo de estatalização da saúde. O mundo extrajudicial também deve ser pensado também como extraestatal para que possamos efetivamente refletir e constituir espaços de construção da saúde que tenham um caráter fortemente societário. O que é “adequado”, na verdade, consiste em considerar que o mundo das instituições jurídicas tem muito a contribuir, porém elas não podem ser as únicas a contribuir com as questões de saúde. É preciso sociedade, estratégias endógenas e, principalmente, estimular e dar visibilidade às práticas genuinamente sociais.
 
* Felipe Asensi é advogado e cientista social, pesquisador do Lappis, professor e coordenador na Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV DIREITO RIO).

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